O primeiro renovador

Quando, em 1997 Cavaco Silva espantou o país e a esquerda com a tal maioria absoluta que era suposto o sistema eleitoral português não permitir, João Amaral tratou de publicar no alinhado e insuspeito "o diário" um artigo de opinião em que esboçava algumas das suas perplexidades.
Num momento em que o PCP ainda aparecia aos olhos dos portugueses como um bloco uno, indivisível, monolítico, e as dúvidas que assolavam militantes e dirigentes como Vital Moreira, Veiga de Oliveira, Silva Marques, Silva Graça, Vítor Louro, Dulce Martins, depois popularizados como "O Grupo dos Seis", ainda eram desconhecidas da opinião pública, João Amaral saía a terreiro nas páginas de um jornal a questionar-se sobre a necessidade urgente de o PCP rever a estratégia e a linha política e fazer frente ao avanço da direita que não conseguira travar nas urnas.
Dezasseis anos depois, João Amaral morreu de cancro, ainda militante do PCP, ainda comunista, ainda a defender que o PCP tinha de rever a sua linha política. É certo que só não foi expulso, por se encontrar já em estado de saúde precário. Mas João Amaral dizia-se comunista, sentia-se comunista e queria ser comunista. Quis sempre ter e sempre teve uma atitude de crítica ligada à terra e um cuidado extremo de nunca pisar o risco, quebrar o laço, passar a fronteira do que é "ser militante do Partido". Ou seja, nunca perdeu o respeito pelo PCP.
Nascido a 7 de Dezembro de 1943, na freguesia da Sé, em Angra do Heroísmo, nos Açores, João António Gonçalves do Amaral adere ao PCP, em 1967, na Universidade de Coimbra, onde terminou o curso de Direito em 1969. O seu padrinho de adesão, quem o conquistou para a militância, foi o então também estudante de Direito em Coimbra e depois seu cunhado, José Barros Moura, que, acabou por ser expulso do PCP, em Novembro 1991, "vítima" do mesmo "problema": a contestação à orientação política do PCP.
A militância de João Amaral começa a destacar-se quando está ligado ao aparelho de imprensa clandestina do PCP a Norte, isto, é recebia e distribuía materiais de tipografia. Na face legal, João Amaral presta serviço militar no Porto entre 1969 e 1972 e lidera o sindicato dos metalúrgicos do Porto, entre 1972 e 1974.
Em pleno PREC, revela-se sua apetência institucional. Sobe à esfera do poder e é chefe de gabinete dos ministros do Trabalho Avelino Gonçalves e Costa Martins, nos I e V governos provisórios, e dos secretários de Estado António Bica e Vítor Louro, no VI governo provisório. E é como chefe de gabinete, quando o PCP já está fora do círculo do poder executivo, que João Amaral vai para a frente institucional, em que se salientará por excelência: a Assembleia da República
Três anos depois entra no hemiciclo, só deixando de ser deputado em 2002, quando o PCP o afasta, não tolerando as suas actividades de oposição interna à linha da direcção dominante.
E é no Parlamento, cuja vice-presidência ocupou entre 1999 e 2002, que João Amaral se torna uma figura pública incontornável e onde se sente como peixe na água, não escondendo o prazer que a actividade parlamentar e legislativa e o exercício do contraditório lhe proporcionava. E até era seu hábito almoçar com um dos quatro filhos na cantina da Assembleia.
Mas se ser deputado lhe dava gozo, o facto é que João Amaral se tornou um deputado de referência sobre assuntos relacionados com direitos, liberdade e garantias, bem como incontornável em matéria de Defesa Nacional.
A sua proeminência e brilhantismo parlamentar foi ainda permitido pela facilidade oratória que o caracterizava, a agilidade de raciocínio e uma capacidade inata para a mediatização. Além de que as câmaras adoravam João Amaral e este estava à vontade à frente delas. Para mais, era fotogénico e preocupava-se em cultivar uma imagem de elegância. Conclusão: transformou-se num dos políticos mais conhecidos da opinião pública.
Só que se era popular nunca aceitou ser popularucho - apanhando, aliás, fúrias monumentais com os jornalistas quando achava que estavam a exagerar o assédio à sua pessoa.
Dando sempre a cara pelo PCP institucional, ao longo de anos a fio, Amaral escondeu para fora as críticas que internamente continuou sempre a expressar. Se bem que sem nunca atingir um grau de destaque e um peso interno que o transformassem numa figura de proa na hierarquia da contestação das primeiras vagas, quer na órbita do "Grupo dos Seis" quer da "Terceira Via". Manteve-se longe destes movimentos e acabou a engrossar o lote de dirigentes e militantes que apostaram em Carlos Carvalhas como o homem capaz de "levar a carta a Garcia" no complexo caminho da refundação do PCP.
Só quando o "Novo Impulso", estratégia de renovação aprovada em 1998, em que aposta a cem por cento, falha, vencido pelos que se reivindicam da herança de Álvaro Cunhal, é que João Amaral faz entornar a taça da sua paciência, que durara mais de uma década, e parte para a contestação publicamente assumida e sem retorno.
Foi, contudo, ainda fruto da sua convicção e da sua expectativa em relação à mudança que aceita, em Maio de 1990, a presidência da Assembleia Municipal de Lisboa, onde substitui José Saramago, curiosamente então numa posição de maior ruptura com a direcção de Álvaro Cunhal. E é a presidência da Assembleia Municipal de Lisboa o único cargo institucional que ocupou até morrer, eleito com um número de votos mesmo superior ao do .presidente da Câmara, Pedro Santana Lopes.

São José Almeida/PÚBLICO

João Amaral: Morreu o ex-deputado que adorava ser deputado

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João Amaral era considerado pelos seus pares na Assembleia como o príncipe dos deputados que nunca perdia o seu refinado humor Tiago Petinga/Lusa

Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, o estado de saúde de João Amaral agravara-se no último mês, tendo participado em Dezembro no lançamento público do livro de Cipriano Justo e depois na inauguração do retrato a óleo de António de Almeida Santos, na galeria dos ex-presidentes, na Assembleia da República, órgão de soberania de que foi vice-presidente, exactamente com Almeida Santos, entre 1999 e 2002.

Deputado desde 1979 até 2002, João Amaral não foi candidato às eleições legislativas intercalares de Março passado, porque não aceitou ser remetido para um lugar não elegível, na lista do Porto, que tinha encabeçado dois anos antes, então em substituição do falecido Luís Sá.

Um convite que é visto então pelo próprio como um pretexto para o afastarem da lista, num momento em que João Amaral era já um dos líderes da terceira vaga do movimento interno em defesa das mudanças no partido. Um movimento que protagonizou no congresso de Dezembro de 2000 tendo então ficado afastado da direcção, em ruptura com a direcção eleita. Pouco depois estava a defender um novo congresso para que fosse feita a renovação ideológica e orgânica do partido.

Sem cargos no PCP, João Amaral era então vice-presidente da AR e presidente da Assembleia Municipal de Lisboa. E se não foi recandidato à Assembleia, em Março passado, foi-o ainda à Assembleia Municipal, no âmbito da coligação com o PS.

É precisamente no período que antecede as eleições autárquicas de Dezembro que João Amaral sabe que os problemas de saúde que o afectam há um tempo são um cancro no esófago, doença que não esconde, mas de que não fala, prosseguindo a sua actividade política e partidária, mantendo mesmo algumas actividades de campanha e procurando continuar a viver em normalidade e a apostar nas causas que o entusiasmavam, a vida parlamentar e a renovação do PCP.

Esta última manteve-o ligado à política activa até ao fim. Mas apenas como militante de base consentido. Ou seja, quando o PCP expulsa Edgar Correia e Carlos Luís Figueira e suspende Carlos Brito, em Junho passado, inibe-se de expulsar também João Amaral: a doença do ex-dirigente é já um facto público e o escândalo seria devastador para a imagem do partido.

Mas se a actividade política foi mantida até ao fim, a parlamentar não, por força de um convite para um lugar manifestamente não elegível, quando já está doente e e a direcção comunista sabe que a doença é irreversível. A ruptura política e a intransigência da direcção do PCP em relação a João Amaral foi também ela irreversível. Na actual legislatura, o homem que adorava ser deputado passou a participar em momentos solenes como o último aniversário do 25 de Abril e agora em Dezembro, a convite de Almeida Santos.

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