No princípio, um aviso: "O filme que vão ver é muito forte." Avancemos, então, dispostos a inquietações.
Tratando-se de um filme palestiniano - pressupondo que isso é tudo o que o espectador sabe -, a simples menção dessa origem não invoca, como habitualmente, o reconhecimento de uma cinematografia. Não é o mesmo dizer "um filme português" e "um filme palestiniano": como falar de um cinema sem território? Não, dizer "palestiniano" é inscrevê-lo, logo, em campo político. A partir daí, parece fácil adivinhar o que se anuncia: uma atitude combativa e o maniqueísmo crónico entre israelitas e palestinianos.
Mas nada nos prepara para "Intervenção Divina", segunda longa-metragem de Elia Suleiman, que nos propõe olhar como se fosse a primeira vez. Combativo sim - afinal, o caroço de uma nêspera pode provocar a explosão de um tanque israelita -, mas não maniqueísta: antes de chegar à questão israelo-árabe, Suleiman demora-se na demonstração dos inconciliáveis entre os próprios palestinianos. Começa por aí o seu grito libertário, nessa ambição de detonar as imagens redutoras e dominantes.
Que sabemos dos palestinianos? Dos seus humores, das suas frustrações, da sua indolência - enfim, do seu quotidiano? É tudo isso que Suleiman dá a ver, com afectuosa ironia e sem complacências. Como se fosse a primeira vez, também, na forma: entre Tati e o desenho animado, entre os silêncios que se diriam do mudo (se o mudo não fosse gritante porque, como disse Bresson, foi o cinema sonoro que inventou o silêncio) e uma melancolia keatoniana, "Intervenção Divina" vai ao fundo dos mecanismos de representação do burlesco para trazê-los ao de cima com nova urgência. É esse o desafio: o "gag" é posto ao serviço do delírio, como arma possível de uma revolta - o tal caroço de nêspera explosivo... -, mas, também, do humanismo, quando se inscreve na realidade - as atribulações quotidianas dos palestinianos. Como os maiores "gagmen", Suleiman aplica-se a sério no seu trabalho, através de uma irrepreensível gestão do tempo e da "mise-en-scène". Sendo menos uma narrativa do que uma sucessão de quadros (como os "post-its", que hão-de surgir mais tarde, espécie de "memos" da planificação do filme), as cenas repetem-se uma, duas, três vezes, até adquirirem pleno sentido: o homem que espera na paragem do autocarro que não vem, o outro que atira o lixo para o quintal da vizinha, o calceteiro que armazena garrafas no terraço.
Efeito da repetição, mas também efeito de enquadramento, como os "gags" que irrompem de um jogo com o que está fora de campo e depois se torna visível - reserve-se a surpresa.
Mas se tudo isto não serviria para fazer de Suleiman mais do que um entusiasmante super-artesão, pela simplicidade de meios, o que o torna fulgurante é o risco do seu programa, aventurando-se a acender um fogo nas contradições que o movem - simultaneamente, o desespero e a esperança - e a deixar-se queimar - no fim, só resta a impotência.
amor em tempos de cólera.Pode-se resumir "Intervenção Divina" como uma história de amor em tempos de cólera. Dois amantes encontram-se no parque de estacionamento de um "checkpoint", entre Ramallah e Jerusalém, para dar as mãos. Ele é palestiniano (é o próprio Suleiman) e vive em Jerusalém. Ela é palestiniana e vive em Ramallah. Encontram-se em terra de ninguém porque ela não pode entrar em Jerusalém - a menos que um balão vermelho, com o rosto sorridente de Arafat, sobrevoe o "checkpoint" e distraia os soldados israelitas... Dupla vingança: Arafat atravessa os céus até chegar onde não pode ir, a Mesquita de Al-Aqsa, ela entra em Jerusalém.
Vingança, também, de Suleiman e da sua fantasia poética: o confronto pode dar-se num sinal vermelho, quando abre a janela do carro para que o vizinho israelita possa ouvir o ostensivo "I put a spell on you", de Natacha Atlas. Não há nada de inocente no gesto porque é assumidamente político - "Ser político é ser sensual", afirma. Como não há nada de miserabilista no seu discurso: por "intervenção divina", uma Ninja palestiniana há-de elevar-se no ar como um parafuso e estacar as balas israelitas, ripostando na mesma medida, com uma rajada de pedras. E as balas pairam em torno da cabeça como uma coroa de espinhos...
Mas há um rosto que, entretanto, vem ocupando o ecrã e que nunca mais nos deixa: é o do próprio Elia Suleiman, com o seu olhar dolente, debruado a negro, eternamente silencioso. Que investe o filme com dilacerante melancolia.
"Intervenção Divina" é, então, um filme a duas velocidades, entre a aceleração do burlesco e o lento carburar do desespero, sempre em pano de fundo. "Porque é que o seu filme é tão desesperado?", perguntaram-lhe um dia. Suleiman pediu alternativas. "Gostaria de acreditar, de me projectar nele realmente. De ver, também, palestinianos a morrer sob as balas inimigas." Respondeu-lhe o realizador: "É isso a esperança? Uma imagem mórbida?"
Comoventíssimo filme este, onde o Godot de Beckett perde o seu sentido metafórico e assume pleno significado. A tragédia que atravessa o filme de Suleiman em surdina é a tragédia das personagens de "À Espera de Godot": o abandono de um Deus que nunca aparece. E o filme chama-se "Intervenção Divina"...
Veja-se o último plano, da panela de pressão, a rimar com o final da anterior longa-metragem do realizador, "Crónica de um Desaparecimento" (1996), em que os pais do realizador cabeceavam frente ao televisor em final de emissão, com a bandeira e o hino israelita. São planos insuportáveis que estão prestes a explodir-nos na cara e, afinal, nada acontece. "Já chega, podes desligá-la", diz a mãe de Suleiman em "Intervenção Divina". Ele não se mexe.
Há uma frase recorrente no filme, que diz assim: "Sou doido porque te amo". Doido, é preciso ser doido para não amar "Intervenção Divina".