Brasil redescobre Drummond 100 anos depois do seu nascimento
A 31 de Outubro de 1902, Carlos Drummond de Andrade nascia em Itabira, Estado de Minas Gerais, filho do fazendeiro Carlos Drummond de Andrade e de D. Julieta Augusta, ambos descendentes de portugueses.
Em 1910, entra na escola primária. Seis anos depois, é aluno interno no Colégio Arnaldo, da Congregação do Verbo Divino, em Belo Horizonte. A educação de ambiente religioso mantém-se quando, em 1918, como aluno interno, entra num colégio jesuíta. O seu irmão Altivo publica o seu primeiro poema, "Onda". Um ano mais tarde, é expulso da instituição. Em 1920, muda-se com a família para Belo Horizonte. No ano seguinte, escreve para o "Diário de Minas" e, em 1922, vence o concurso Novela Mineira com o conto "Joaquim do Telhado".
Desde muito cedo, a vida de Drummond marca a sua obra. Maria Aparecida Ribeiro, docente da cadeira de Literatura Brasileira, da Universidade de Coimbra, é muito clara. "A relação não é, nem pode ser, linear. Não se pode dizer que 'os sapatinhos cor-de-rosa doados pela madrinha fizeram do poeta um homossexual'". Em contrapartida, existem outros dados biográficos que têm que ser "problematizados: o nascimento em Itabira, a perda da condição de proprietário de terras que o torna 'fazendeiro do ar', a vida no Rio de Janeiro ou o ter sido funcionário público."
"Vai, Carlos! ser 'gauche' na vida"Antes, no silêncio dos dias e da noites, encontra nomes grandes das letras brasileiras (Manuel Bandeira ou Mário de Andrade), e em 1925, casa com Dolores Dura de Morais. Se em 1926 conheceu a alegria quando o compositor Heitor Villa-Lobos lhe musica o poema "Cantiga do Viúvo", a tristeza chega um ano depois: o seu filho Carlos Flávio vive apenas meia hora...
Com "Alguma Poesia" (1930) e "Brejo as Almas", de 1934, quando vai viver para o Rio - o poeta poucas vezes sairá da cidade criada por Deus... -, Drummond é ortodoxamente vinculado às directrizes do modernismo de 1922 (ver texto nestas páginas) predominando, sobretudo, o humor e a irreverência de uma linguagem programaticamente "antipoética".
Com "Sentimento do Mundo" (1940) cumpre-se aquilo a que se pode designar o lirismo drummondiano que adquire inflexões ostensivamente sociais. Chefe de gabinete do ministro da Educação, Gustavo Capanema, entre 1934 e 1945, sai para, a convite de Luís Carlos Prestes, o secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, ingressar no jornal "Imprensa Popular". Por divergências abandona-o pouco tempo depois, começa a trabalhar na direcção do Património Histórico e Artístico Nacional e vem a lume um título que confirma a sua vertente "gauche" - "A Rosa do Povo", na editora José Olympio, o primeiro editor que se interessa a sério pela sua obra.
"José, e agora?"
Nos finais dos anos 40 princípos dos 50 sucedem-lhe um turbilhão de coisas: a mãe falece, em 1948, colabora em "Política e Letras", sobe à cena no Teatro Municipal do Rio a obra "Poema de Itabira", com música de Villa-Lobos.
Novo golpe de cintura, quando se começa abrir a novos horizontes com prospecções intimistas e existenciais de amplo fôlego a partir de "Claro Enigma ", de 1951. A vertigem da poesia - ele que confessará a Arnaldo Saraiva, numa entrevista dada em 1986, que gostaria de ser contista, romancista, teatrólogo, "cedo, porém, reconheci os meus limites" - torna-se avassaladora. Poetar conjuga-se com amar: "Passeios na Ilha", "Viola de Bolso" (1952), "Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora" (1954), "Viola de Bolso Novamente Encordoada" (1955), no ano seguinte "50 Poemas Escolhidos pelo Autor" e, em 57, "Fala Amendoeira" e "Ciclo".
1964. A Aguilar publica a primeira edição da "Obra Completa". Desde muito cedo, do lado de cá do Atlântico, temos notícias do poeta a começar pela visita da grande poetisa Cecília Meireles que, em 1934, em Lisboa conhecerá Pessoa e fala de Drummond. Entre nós sai, em 1965, "Antologia Poética".
A sua poesia nesta fase, atravessa um período de experimentação linguística pós-concretista como em "Lição de Coisas" (1962) e, finalmente, desagua no intenso memorialismo desenvolvido a partir de "Boitempo " (1968).
"Ó vida futura! nós te criaremos"Por essa época, recusa a sua candidatura para o Nobel. Diz a Arnaldo Saraiva que não compreende o sentido dos prémios. Brutal, acrescenta: "Dinheiro é uma coisa, literatura é outra." Não se importa o impacto que o galardão possa ter no Brasil. "Importa-me, sim, saber, que temos em nossa história da literatura um escritor chamado Machado de Assis."
O ensaísta brasileiro Antônio Candido, Prémio Camões em 1997 (e a quem Drummond dedicou o poema "Medo"), afirmava ontem ao PÚBLICO: "Considero-o um dos maiores poetas do século XX das literaturas ocidentais. Tenho o hábito de dizer que foi uma sorte danada o facto de dois dos maiores romancistas do século XIX serem de língua portuguesa: Assis e Eça. Tivemos a mesma sorte no século XX: Pessoa e Drummond de Andrade."
Ao lado da poesia, as suas crónicas no "Jornal do Brasil", onde começou a trabalhar em 1969, são devoradas. Nos anos 70, continua a publicar à velocidade de cometa - ele mesmo é um cometa da maior grandeza, para lembrar a arte de que fala Herberto Helder - e a receber mas também a recusar prémios. Em 1982, completa 80 anos. Quatro anos depois muda para a Record, que edita a sua obra até hoje, e sai do "JB" com a crónica "Ciao"!
Em 1986, ano em que edita "Tempo Vida, Poesia", sofre um enfarte e fica internado 12 dias. A sua filha Maria Julieta, também ela escritora, morre a 5 de Agosto de 1987, vítima de cancro: "E assim vai-se indo a família Drummond de Andrade", comenta o poeta. A 17 de Agosto é a sua vez de deixar o mundo das letras universais - e não só brasileiras - mais pobre.
Até hoje, Drummond continua a ser celebrado. Sobre o homem, como diz Arnaldo Saraiva, era "austero, rigoroso, um homem superior não só pela poesia, também pelo carácter muito forte como o do seu pai. Embora se sentisse melhor no diálogo pela escrita do que em presença. Ele evidenciava facetas de mineiro mas escapa até fisicamente - branco por todo os lados - ao modelo do brasileiro típico, que aliás não existe."
Sobre a sua poesia concorda com outro grande das letras brasileiras - Murillo Mendes: "manualizou-se (numa referência a Bandeira). "Mas podemos dizer que se drummantizou e não só a poesia brasileira, a portuguesa também." Na hora do centenário do seu nascimento, na hora do "Balanço", num poema seu escrevia: "A incerteza de tudo/na certeza de nada."
Nada? Não! Ser e poesia. Retornemos aos versos iniciais do poema "Eterno", de 1961: "E como ficou chato ser moderno./ Agora vou ser eterno". A rigor, porém, a eternidade não surge como estágio subsequente à modernidade: a condição para atingir o eterno é ser 'continuamente' moderno. E Drummond é - fala do seu tempo ("O presente é tão grande, não nos afastemos") , mas num discurso que, ao ultrapassá-lo, se torna potencialmente contemporâneo daquilo que ainda está por vir: "Ó vida futura! nós te criaremos".