"This is daddy's time, now!" Foi o que Steven Spielberg anunciou aos filhos, quando, perante o protesto deles, recusou fazer "Harry Potter" ou "Spider Man", projectos que, todos diziam, tinham a cara dele - por isso os recusou.
"Quando era mais novo, o que me importava era o que as pessoas pensavam dos meus filmes. Agora penso menos em mimar e 'dar de comer' aos espectadores. Cheguei a um ponto na minha vida em que me quero servir a mim próprio", disse.
"This is daddy's time, now!", decretou. E foi o "tempo do pai", por exemplo, com "AI-Inteligência Artificial", em que o encontro com o pessimismo de Stanley Kubrick trouxe o risco de volta à obra do realizador de "Encontros Imediatos do 3º Grau", dando azo a que se falasse do "renascimento" de um cineasta. É claro que Spielberg não deixou de ser "filho" ou de filmar do lugar do "filho" (de Kubrick, mostram-no agora "AI" e este "Relatório Minoritário"?). Mas há algum tempo e muitos filmes que parecia em perda de coragem e de capacidade de enfrentar a escuridão, refugiando-se na luz, nas solicitações das bilheteiras, fechando os olhos e não tendo de se expor (isto, segundo Spielberg, foi o que lhe atirou à cara o amigo Martin Scorsese).
"This is daddy's time, now!" outra vez, então, com "Relatório Minoritário". Onde o cineasta mais rentável de Hollywood (cerca de duas dezenas de filmes, receitas de 6,7 mil milhões de dólares) encontrou, finalmente, uma das estrelas mais lucrativas do cinema americano, Tom Cruise (cerca de 3,3 mil milhões de dólares e 23 filmes). Finalmente, porque os dois conheceram-se em 1983, mas nunca até agora tinham concretizado os seus projectos - como "Arkansas" (um western), "The Curious Case of Benjamin Button" (uma história, de F. Scott Fitzgerald, sobre um homem que em vez de envelhecer vai ficando mais novo) ou até "Rain Man", que Spielberg esteve para dirigir, antes de optar pelo terceiro Indiana Jones.
Se não contar o "filme dentro do filme" que está em "Austin Powers em Membro Dourado" [ver texto nestas páginas], em que um realizador chamado Steven Spielberg aparece a dirigir um actor chamado Tom Cruise que aparece a fazer de Austin Powers, desta vez é que foi. O encontro entre os dois "duplos" - Cruise, foi notado, exibe como Spielberg a síndrome do filho de lar desfeito, próximo da figura materna e com ressentimento em relação ao "pai" - é, com a evidência dos números, um encontro de peso e de ressonâncias simbólicas: o cineasta que inventou o conceito do "filme acontecimento de Verão" ("Tubarão", década de 70) e a estrela que, como alguém escreveu, tem à sua volta uma máquina publicitária que é praticamente um ministério da propaganda.
Ora, ao contrário do que seria previsível, não há nada de gorduroso ou "pompier" em "Relatório Minoritário", que mantém até ao fim ("quase", o filme perde-se um pouco na sua meia hora final...) a economia sombria típica da série B. Sim, série B (com dinheiro...), negra, obsessiva, irónica.
film noir. Negro e irónico é o universo de Philip K. Dick que "Relatório Minoritário" adapta. Foi Tom Cruise, na altura a rodar com Kubrick "De olhos bem fechados", que passou o projecto a Spielberg. Mas foi o realizador que tomou uma decisão que se revelaria fundamental e até mais aventurosa do que dar a Cruise a personagem principal, descrita no conto de Dick como "bald, fat and old". E ela foi: encaminhar a distopia de Dick não no sentido de cenário de antecipação científica mas para os caminhos do "film noir". Ou seja, divertimento negro.
Washington, 2054. Os crimes foram erradicados da sociedade graças a um método, que é a "menina dos olhos" de John Anderton/Cruise, um dos chefes do chamado Departamento Pré-crime: um grupo de mutantes, que são mantidos em estado de suspensão numa câmara aquosa que é uma espécie de útero, são capazes de "ver" os acontecimentos futuros e fazer com que a polícia aniquile um potencial criminoso antes de ele cometer o crime. O sistema é, aparentemente, infalível. Até que John Anderton é, ele próprio, colocado na mira: segundo os mutantes visionários, em poucas horas Anderton vai matar.
O (anti)herói, que vai perder as suas referências como filho e que já lhe viu ser tirada a sua posição de pai, e que é uma figura maculada como poucas personagens dos mais recentes filmes de Spielberg, tem de fugir e provar a sua inocência. Tem de aventurar-se pelo labirinto equívoco das imagens e mergulhar na escuridão - arrancar os olhos, literalmente - para se limpar da "overdose" e aceder à luz, aprendendo a ver. "Can you see?", atira-lhe a mutante Agatha/Samantha Morton.
É um périplo de conhecimento (onde se nota em miniatura, como numa versão mais esquálida, a odisseia de "AI", prova de que o encontro com Kubrick marcou) que Spielberg dirige com o "panache" e a iconoclastia de um maestro virtuoso (as metáforas musicais abundam, aliás). E como Cruise/Anderton faz dançar as imagens no início de "Relatório Minoritário", assim Spielberg coreografa as referências ao "film noir" (falou na influência de clássicos de John Huston, como "O Falcão de Malta" ou "Paixões em Fúria") ou ao divertimento hitchcockiano ("Intriga Internacional", em que Alfred montava várias ciladas a Cary Grant), passando pela autocitação (no ofegante combate entre Cruise e a sua "nemesis" - Colin Farrel - sentem-se as saudades das aventuras de Indiana Jones).
É tudo temperado com a sombria frieza que foi redescoberta com, e por causa de, Stanley Kubrick. E com pozinhos de "policial" género "quem matou?", aqui reformulado para o género "será que vai matar?" - é coincidência que os três mutantes se chamem Agatha (Christie), Arthur (Conan Doyle) e Dashiell (Hammet)?
A "visualização" do futuro em "Relatório Minoritário" é determinante. Provoca o efeito, muito sedutor e lúdico, de algo em transição mas ainda assim reconhecível: um futuro que já podemos encontrar no presente do nosso quotidiano. Ou sonhar com ele. Tem sido contado que na fase da preparação do filme Spielberg convidou um grupo de especialistas da área da ciência, medicina, transportes e meio ambiente para, juntos num hotel durante três dias, imaginarem o futuro. Dessas sessões nasceram, por exemplo, os veículos de levitação magnética que sobem e descem pelas paredes dos edifícios, ou então a "sick stick", arma que inflige a um fugitivo náuseas violentas (ao que consta, um "personal favourite" do escritor Douglas Coupland, que esteve nesse grupo) ou ainda os "jet packs", reactores dorsais que os polícias usam para interceptar rapidamente os criminosos em fuga. Em relação a esses artefactos, o realizador manteve os olhos bem abertos: com tanto dinheiro e efeitos especiais, o melhor era mesmo não lhes ligar nenhuma, não deixar que o deslumbramento resvalasse para a exibição e auto-celebração. Economia e ironia... que é coisa que parecia ter desaparecido da obra do realizador; é preciso recuar bastante até ao passado para a encontrar, mas é preciso também recordar que quando ela aconteceu, muitas vezes chegou com os trajes excessivos da anarquia (por exemplo, "1941"). Eis, então, a sequência dos olhos esbugalhados a rolar pelo chão em "Relatório Minoritário". Não se imaginava que ainda fosse capaz...