Um Filme Doce

É brutal, como tudo o que acontecerá nas duas horas e 50 minutos subsequentes, onde reencontramos o universo de "Ossos" liberto de concessões e manipulações narrativas, e em princípio (ou por princípio) sem a luz que Pedro Costa atirava sobre as personagens - agora, a luz vem de lado, é a luz que as janelas e as portas podem dar.

"No Quarto da Vanda" é uma "reacção" a "Ossos" (como se Costa se quisesse agora reduzir a intervenção do seu olhar, o que é uma proposta complexa tanto ao nível das intenções como dos resultados) e isso fica anunciado no primeiro plano.

Compreende-se que a impressão de brutalidade seja mais forte: trata-se de ver Vanda e todos os outros no quotidiano, a viverem as suas vidas sem sombra de ficção. Mas ir às Fontaínhas e fazer um filme "brutal" está ao alcance de qualquer um; "No Quarto da Vanda" é um objecto especialíssimo (ainda nesse primeiro plano) porque essa brutalidade dá lugar a um extremo refinamento e a uma enorme doçura, tanto ao nível da elaboração formal como no que diz respeito à relação emocional que o filme mantém com os protagonistas - refinamento e doçura que, para lá de o que trazem e de tudo o que constituem, são a chave da posição "moral" do filme: não vamos ver "bichos" numa reportagem de "choque", vamos ver pessoas e deixarmo-nos tocar por elas.

Quando, nesse primeiro plano (ainda pré-genérico), o espectador se dá conta (passado o "choque", precisamente) de que em fundo na banda sonora passa uma canção triste (que podia passar num rádio ali perto ou não, já que foi Costa quem disse que "se não se deve traficar com a imagem, com o som isso já não é bem assim"), percebe imediatamente o nível "sub-cutâneo" a que a doçura vem trabalhar, muito para lá da brutalidade da superfície.

Inquebrável. Também por isso, não importa saber se "No Quarto da Vanda" é um documentário, se é uma montagem de imagens documentais organizada segundo princípios ficcionais (com tantas personagens e tantas pequenas histórias que atravessam o filme), ou se é, pura e simplesmente, um poema, tão trabalhado (manipulado não é o mesmo que dizer "falsificado") ao nível da imagem como do som, e dedicado a Vanda e aos seus vizinhos. E se é inegável que, seja qual for a nossa opção, o filme resiste como documento (a vida nas Fontaínhas, em finais do século XX) aberto a leituras sociológicas e políticas, aquilo que transforma "No Quarto da Vanda" num objecto único e incomparável é estar sustentado numa narrativa trágica, assente em processos expressivos (a componente pictórica de alguns planos, num cruzamento entre a pintura italiana renascentista, a pintura flamenga e o hiper-realismo) que "roubam" ao real tanto quanto lhe oferecem - a relação de "No Quarto da Vanda" com o real é biunívoca, o filme está tão disponível para ele como ele para o filme.

É assim que a história de Vanda e de todos os outros pode ser contada como uma saga, familiar e repetitiva, onde todas as distâncias são diluídas (só se sai das Fontaínhas para dois ou três planos no cemitério de Carnide que são o "clou" de uma espécie de "gag" triste) e tudo se torna tão "normal" como em qualquer saga familiar e repetitiva. Ou que o bairro das Fontaínhas pode ser filmado como uma enorme carcaça fumegante, acossada pela omnipresença dos buldozzers que vêm transformar tudo em ruínas e resolver um "problema social" (ou atirá-lo para longe da vista). E que os seus habitantes podem ser filmados como um conjunto de seres amaldiçoados, conscientes da sua tragédia ("esta é a vida que nós queremos ter", diz Vanda) mas, como qualquer personagem trágica, incapazes de a alterarem - como se tivessem nascido no meio da peste e a tivessem escolhido, e dessa escolha viesse uma força impressionante, que os mantém vivos e faz deles seres paradoxalmente invulneráveis e inquebráveis.

"No Quarto da Vanda", na sua imensidão formal e na sua riqueza expressiva, é um filme demasiado complexo, porventura demasiado contraditório, para se poder reduzir a um gesto, seja ele de ordem teórica, prática ou ética. Mas a sua grandeza vem obviamente daí, e essa é uma das razões por que não há nada que lhe seja remotamente aproximável, nem em Portugal nem no mundo.

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