Afinal, o que vem a ser o tão citado "detaille" de "Inquietude"? Mistério... Já aquilo que não é, talvez seja mais fácil de encontrar ? a parcela, entendida como parte (ou resto) de uma totalidade ausente mas (mais ou menos) entrevista. Porque tal como cada segmento deste filme tripartido aspira à fusão num tema único ? a imortalidade ? e se dá a ver como elemento de uma adição e não como elemento subtraído, cada uma das componentes que o formam (planos, personagens, diálogos, registo formal) surge também como totalidades. A parte pelo todo ? e será a evidência desta "démarche" que oferece ao filme o seu tom mais "ilustrativo". Para mais quando o todo é gigante: da extensão de uma obra imensa e genial como a de Manoel de Oliveira. Então, "Inquietude" deixa de ser obra/filme ou parcela de obra fílmica e fica reduzido a símbolo de ambas. 13/11/1998
Quando nos lembramos dos seus quase 90 anos, é fácil elogiar Manoel de Oliveira e a sua obra contemporânea a partir de chavões como "criatividade" e "vitalidade". Termos que, se são justos, não deixam de ser um redutores nem, se calhar, menos "simpáticos" para o cineasta do que o que pretendem ser ? como se o maior motivo para admirarmos Oliveira fosse a sua longevidade. Porque, afinal, se há coisa que esteve sempre presente em Oliveira, desde "Douro, Faina Fluvial" até hoje, foi uma espantosa imprevisibilidade ? esta sim, uma palavra que não joga apenas com atributos físicos ou naturais, e que faz com tudo dependa de outra coisa, mais incerta, que nos aproxima decisivamente das razões por que se deve admirar Oliveira: pelo talento, pelo génio. E o certo é que Manoel de Oliveira, contrariando outro chavão (este reservado aos seus detractores mais ou menos sistemáticos) foi sempre "diferente", nunca seguiu qualquer "programa" (as correlações internas da sua obra são tudo menos lineares), e, sobretudo, foi sempre imprevisível: à entrada de cada novo filme sabemos que podemos esperar tudo, sabendo igualmente que aquilo que ele nos vai dar vai ser tudo menos o que esperamos. Os riscos disto são para serem corridos pelo espectador, mesmo, ou sobretudo, pelo espectador que goste de se pensar enquanto admirador de Manoel de Oliveira: num jardim tão rico como é a sua obra, há sempre a hipótese (o risco), de que por vezes o cineasta não regue as nossas flores preferidas. No caso de "Inquietude" haverá quem o eleve aos píncaros (internacionalmente, foi aclamado unanimemente), haverá quem o arrase, haverá (é o caso de quem escreve este texto) quem diga que nem tanto ao mar nem tanto à terra. Para deixar claro, "Inquietude" é um muito bom filme mas sofre com a elevada altura a que Oliveira colocou a fasquia para a sua obra, particularmente com a sequência de ouro que começou em "O Convento", passou por "Party" e desembocou em "Viagem ao Princípio do Mundo". Três filmes completamente diferentes, como diferente é "Inquietude": a imprevisibilidade mantém-se e é realçada pelo facto de, depois do tom confessional (como nunca antes acontecera em Oliveira) de "Viagem...", "Inquietude" começar por propôr um regresso à farsa, onde a primeira palavra a ser ouvida é "mata-te!" ? como se no filme com Mastroianni Oliveira tivesse "falado demais" e fosse preciso reerguer as defesas, falar da morte com um distanciamento tão cínico quanto possível. De resto, esse distanciamento é uma das figuras centrais em "Inquietude", manifestando-se tanto no tom como na forma. Se o ponto de partida para o filme assentou na adaptação de três textos literários (a peça "Os Imortais" de Prista Monteiro, os contos "Suzy" de António Patrício e "A Mãe de um Rio" de Agustina Bessa-Luís), Oliveira unifica-os de modo a que, mais do que o truque narrativo, sobressaia essa relação de distanciamento levada a um ponto de curto-circuito: assim, "Os Imortais" transforma-se numa peça teatral a que assistem as personagens de "Suzy", enquanto "A Mãe de um Rio" aparece como uma espécie de "filme no filme", uma história contada por essas mesmas personagens. Apesar deste procedimento nenhum dos segmentos deixa de possuir uma identidade própria - são três filmes diferentes e não há mal nenhum nisso. O mais curioso é que cada um deles reflecte um Oliveira com preocupações diferenciadas. Sem forçar a nota (mesmo que o título "Inquietude" seja formidável no modo como pode servir para cobrir toda a obra de Oliveira), passa-nos pela cabeça a ideia de revisão de umas tantas questões essenciais para o cineasta: em "Os Imortais" fala-se, claro, da morte, num registo de farsa com antecedentes na sua obra e cujas coordenadas teatrais são sempre sublinhadas; em "Suzy" fala-se de mulheres e de "paixões funestas", em ambientes e recursos formais reminiscentes de "Amor de Perdição" ou de "Francisca"; em "A Mãe de um Rio" encontramos aquela comunhão entre os Deuses e os Homens, entre a mitologia e a força telúrica da terra e das "coisas" do mundo, que evoca "Acto da Primavera" ou momentos da "Viagem ao Princípio do Mundo". Em face da aparente menoridade do formato em "sketches", e perante a facilidade com que "Inquietude" convoca, de modo expresso, o passado da obra de Oliveira, alguns dirão que com este filme o cineasta entra num impasse auto-condenado à mera repetição. Preferiremos dizer que Oliveira se passa em revista e que nada sabemos (ou só podemos tentar adivinhar) sobre a necessidade, para ele, dessa revisão neste momento ? "Inquietude" está, para lá disso, povoado de signos pessoais que lhe conferem uma dimensão razoavelmente críptica. É por isso que o filme se vai vendo com uma sensação crescente de "inquietude", como se um obscuro "mal de vivre" se fosse propagando e disseminando, arrastando-nos nele sem no-lo explicar. E apesar de não suscitar a sensação de perfeição de outros filmes de Oliveira, isso não impede que tenha um punhado de momentos antológicos. Citemos dois ou três: a aparição de Isabel Ruth no primeiro segmento, da discreta fotografia que antes já domina o enquadramento à "explosão" do piquenique, com a dança e a evocação, já tão citada, do "Déjeuner sur l?Herbe"; o tango dançado por Oliveira e esposa em "Suzy", que no contexto em que aparece está longe se poder resumir a um "clin d?oeuil" e é sobretudo por isso que é corajoso; os planos com Irene Papas n?"A Mãe de um Rio", ou a descoberta, nesse episódio, dos dedos dourados de Fisalina.