Dois amantes de Hong Kong dançam o tango da morte do seu desejo nos bares de Buenos Aires. A fuga é impossível. Foi esse também o movimento de Wong Kar-wai, que quis fugir a Hong Kong e às marcas deixadas por “Chungking Express”. E como ele disse, nesta entrevista ao PÚBLICO, “por muito que se fuja, acabamos sempre por fazer a mesma coisa. Hong Kong continuará sempre em nós”. Com “Felizes Juntos” recebeu o prémio de realização no Festival de Cannes do ano passado. Se “Chungking Express”, como disse Wong Kar-wai, era Coca-Cola e “Anjos Caídos” era “ice cream”, então o que é que pode ser “Felizes Juntos"? Pausa longa... “Não é Coca-Cola, não é ?ice cream?, é um almoço muito chinês, muito simples e familiar”. Da Coca-Cola ao almoço, passando pelo “ice-cream”, porque Wong Kar-wai, 40 anos, gosta do vapor das cozinhas e do cheiro da comida. “Gosto de comer e de ver as pessoas comer. Há um ditado em Hong Kong que diz que a razão para as pessoas trabalharem ou para estudarem é ?a procura de comida?. É uma boa explicação para filmar: para ter comida, para viver. Hoje percebo que para os chineses, para os taiwaneses e para as pessoas de Hong Kong a vida é tão rápida, tão veloz, que o único momento para conversar é durante as refeições. É uma tradição que tem estado perdida. O meu pai dizia-me que eu comia muito depressa, quando no tempo dele as refeições demoravam três horas”. E acrescenta: “?Felizes Juntos? é um filme sobre Hong Kong”. Mas... este não é o filme que foi filmar à Argentina, com música de Astor Piazzola, Caetano Veloso e Frank Zappa? E não é a história de dois amantes que tentam reactivar a sua relação fugindo para longe e esquecendo Hong Kong num “road movie” afectivo e existencial? “Não consigo explicar muito bem a afirmação de que este é um filme sobre Hong Kong. É algo de muito interior. Está no meu coração. O meu ?location manager? em Buenos Aires estava frustradíssimo porque, dizia ele, tinha-me mostrado todos os palácios, todos os edifícios bonitos da cidade, mas eu não me interessava por eles, só queria voltar a La Boca [bairro popular da cidade onde nasceu o tango] ou então filmar num hotel. Porquê? Não sei. Talvez devido aos cheiros e à luz, La Boca fez-me lembrar Hong Kong. O cheiro... quando estava a filmar sentia o cheiro de Hong Kong. É um filme absolutamente interior. O contacto com os argentinos foi muito limitado. Tudo se passou num espaço muito fechado”, conta.
A fuga
Wong Kar-wai, que passou a adolescência em Hong Kong a ir ao cinema com a mãe para ver filmes ocidentais, assume uma admiração infinita por Orson Welles. E acaba por partilhar com o cineasta americano a postura quase fatídica, e sempre em colisão com o fracasso, de que fazer um filme é uma forma de resolver problemas. E ele, que não é “um grande planeador”, diz que cria imensos problemas a si próprio ? os argumentos que reescreve constantemente; as personagens que desaparecem das versões finais ? e está sempre ocupado a tentar resolvê-los. “Gasto a maior parte da minha energia a resolver problemas. E de alguma forma o estilo do filme é o resultado da forma como tentámos resolvê-los: não temos dinheiro, temos de filmar em condições precárias e as condições nunca melhoram, porque crio cada vez mais problemas e se tenho mais dinheiro, gasto também mais”. É isso, também, que faz da obra de Wong Kar-wai não tanto um conjunto de títulos individualizados, mas um rumor, de imagens e de sons, em permanente expansão; como se cada título fosse apenas uma cena de um grande, longo filme por acabar, e esse filme maior ? e esse movimento ? existisse mesmo na invisibilidade do espaço entre as obras. “Não me perguntem que grande filme é esse. Só o saberei quando parar, definitivamente, de filmar”, diz Wong Kar-wai. “Days of Being Wild” (1990) era a primeira parte de um díptico que nunca chegou a existir; “Chungking Express” (1994) aconteceu devido aos problemas que o cineasta teve com “Ashes of Time” (1994) e que ele queria esquecer para começar de novo, “para ter tempo para recuperar"; “Anjos Caídos” começou por ser a história que não coube em “Chungking...”. E “Felizes Juntos"? Foi, primeiro, a ideia de deixar um filme acabado antes de 1 Julho de 1997, data do regresso de Hong Kong à China, “para marcar o final de um capítulo” ? entretanto, meteu-se a meio a rodagem do próximo filme, um musical, “Summer in Beijing”. Depois evidenciou-se uma hipótese de fuga, com um argumento inicial que não teve nada a ver com o resultado final. “Estava farto de ouvir perguntas sobre o que é que ia acontecer a Hong Kong depois da reunião com a China. Por isso, decidi sair de Hong Kong e fazer um filme na Argentina. Gosto muito de um escritor sul-americano, Manuel Puig, especialmente de um dos romance dele, ?Buenos Aires Affair?. Pensei que talvez pudesse fazer um filme em Buenos Aires. Era um tributo ao meu escritor favorito ? embora, depois do filme feito, tivesse verificado que ?Buenos Aires Affair? não era um título adequado porque era demasiado exótico e o filme não é uma história sobre Buenos Aires. Volto a dizer, é uma história sobre Hong Kong”. Havia mais coisas a escapar, como Wong Kar-wai explica. A sua própria obra. “Senti que este filme tinha de ser diferente de ?Chungking Express? e de ?Anjos Caídos?. Porque já há tantas cópias”. E conta o episódio do encontro com um distribuidor coreano que lhe mostrou o “trailler” daquele que tinha sido o maior êxito coreano em 1997. “Vai gostar, dizia-me ele. É uma mistura de ?Chungking Express?, ?Anjos Caídos? e de ?As Tears Go By? [1988, o primeiro filme do realizador]. Copiaram tudo, o trabalho de câmara, a montagem, a música. Foi um sinal para mim que tinha de avançar. Onde é que essas mudanças vão desembocar, não sei. Só sei, e foi isso que disse aos meus colaboradores, que tínhamos de fazer algo diferente”. Dois homens, também, para escapar ao “boy meets girl” adolescente e solipsista dos outros filmes. Mas quando Wong Kar-wai chegou à Argentina, com um disco de Piazzola nas mãos que lhe tinham passado no aeroporto de Amesterdão, rapidamente percebeu que não poderia fugir a Hong Kong. O argumento foi-se transformando ? era inicialmente a história de um jovem que partia para a Argentina para descobrir que o pai tinha sido assassinado; passou a ser a história de dois amantes infelizes juntos. E Hong Kong perseguiu as personagens, que no meio da Argentina vêem, invertido pelo fuso horário, um “flash” da ex-colónia britânica, o “skyline” de pernas para o ar, fantasma que não puderam deixar de transportar. Como aconteceu a Wong Kar-wai em “Felizes Juntos”, onde continuamente se reconhece, como fantasma no ecrã, a memória de outros filmes: uma praça de Buenos Aires enquadrada por um anúncio luminoso exactamente da mesma forma como a primeira imagem do primeiro filme do realizador, “As Tears Go By"; o voo sobre as cataratas de Iguaçu, na fronteira entre o Brasil e a Argentina ? com o qual Wong Kar-wai ia “assassinando” o seu operador de câmara, que esteve pendurado de um helicóptero durante três horas ?, exactamente como o nostálgico “travelling” azul, ao som de Xavier Cugat, em “Days of Being Wild”. “Não sei porque é que filmámos nas cataratas. O director artístico tinha comprado aquele candeeiro que se vê no filme, e de repente, sem razão, verificámos que nesse candeeiro estavam pintadas cataratas e duas figuras humanas, dois homens. Isso tornou-se a história. Foi uma coincidência: o filme passou a ter de ir do candeeiro para as verdadeiras cataratas. E as cataratas, para mim, significam a reunião, porque é o sítio onde as águas se unem ? também pode ser uma metáfora de lágrimas, imensas lágrimas”. Não são momentos de citação, são fluxos de uma saudade involuntária e inescapável ? só num momento, Wong Kar-wai não resiste em sublinhar, quando põe uma das personagens a dizer aquilo que é verdadeiro para todos os seus filmes e nunca precisou de ser dito antes: que os filmes se “vêem melhor ouvindo”.
O regresso
"A primeira coisa que marquei e porque nunca tinha filmado antes a relação entre dois homens foi que tinha que ser uma narrativa mais linear. E como ponto de partida, filmei no primeiro dia a primeira cena do filme”, o encontro sexual entre as duas personagens. “Era a forma de marcar, para mim e para os meus colaboradores, o assunto do filme, para que nunca nos esquecêssemos”. E era a forma de derrotar as resistências, os egos e os medos das duas vedetas masculinas, Tony Leung e Leslie Cheung. Mas as saudades de Hong Kong são saudades do trânsito, daquilo que passou e não se fixou. “A minha família mudou-se da China para Hong Kong quando eu tinha cinco anos, e o meu pai fartava-se de me dizer que Hong Kong era um sítio em que estávamos de passagem. Se as coisas na China melhorassem voltávamos à China; se piorassem continuávamos em trânsito”. A linearidade não parece ser o terreno de eleição para Wong Kar-wai. Sempre que se fecha num quarto com as suas duas personagens, “Felizes Juntos” fica como “acto falhado”, fuga impossível. O “road movie” é um movimento em falso ? feito com a horizontalidade de Wenders ou de Jarmusch, quando no cinema de Wong Kar-wai os espaços e os tempos não se percorrem, sobrepõem-se. E o espaço único do hotel onde se agridem os amantes é apenas um cenário, as passagens do preto e branco e cor quase aleatórias e ficam como sinal de um desnorte que Wong Kar-wai vive e exibe enquanto manipula as imagens como um DJ hesitante. Quando a distância entre as personagens aumenta, e se intromete Chang (Chang Chen), o terceiro vértice de um triângulo por cumprir, não é só Taiwan, onde nasceu essa personagem, que se une a Hong Kong e à China ? “Uma história de reunião”, dizia a publicidade do filme; é o cinema de Wong Kar-wai que pode explodir; são os corpos que podem fundir-se com os locais, mancha de abstracção, num sincronismo entre o espaço e as figuras que por ele deambulam. “O filme começa com as duas personagens muito próximas na Argentina, na verdade tão próximas que estão juntas na cama. Mas depois começa a alongar-se a distância entre elas, enquanto um deles se vai aproximando outra vez de Hong Kong. De qualquer forma, sendo a relação entre Tony e Leslie tão próxima, estando os dois tão dedicados nas lutas do seu próprio mundo, senti que devia haver um contraste. Deveria haver uma personagem que funcionasse como contraponto, uma personagem jovem, sem preocupações, como é Chang, para ver até que ponto é que conseguíamos ir na liberdade. Para lembrar, também, que havia outras formas de encarar a vida para além da obsessão”. O movimento final de “Felizes Juntos” passa a ser, então, imparável, culminando na esfuziante entrada de Tony Leung em Hong Kong, ao som de “Happy Together”, dos Turtles. É a explosão da alegria de cinema de Wong Kar-wai, que tinha fugido, ao regressar. “Acabou por ser um regresso. As pessoas dizem que o título, Felizes Juntos, é cínico, porque na verdade as personagens separam-se. Eu penso que Felizes Juntos pode aplicar-se a uma relação entre duas pessoas mas também a uma pessoa só, e à sua relação consigo mesma. No fim, Tony está sozinho, mas feliz consigo mesmo. Pode continuar”. “Aprendi uma lição com Felizes Juntos”, conclui o realizador. “Por muito que se fuja, acabamos sempre por fazer a mesma coisa. Não é preciso preocuparmo-nos. Queremos partir? Partamos. Mas Hong Kong continuará sempre em nós. O futuro dos cineastas de Hong Kong, depois da entrega à China? A coisa mais importante para um cineasta é acreditar que pode fazer os filmes legal ou ilegalmente”.