Os donos da História de Portugal
Uma das razões por que não há nada sobre Marcelino da Mata prende-se com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva, que confundem o campo da História com os seus quintais ideológicos.
O meu artigo sobre Marcelino da Mata deu origem a várias reacções, entre as quais as de Vasco Lourenço, aqui no PÚBLICO, e a de Manuel Carvalho da Silva, no Jornal de Notícias. Ambos aproveitaram para fazer referências jocosas à minha nomeação para presidir ao 10 de Junho (Vasco Lourenço, engraçadíssimo: “Confio que não tenha a tentação de promover qualquer farsa semelhante a essas jornadas de Salazar e Caetano!”), um divertimento pícaro por esta altura já demasiado batido, e ambos fizeram um grande esforço para tresler tudo aquilo que escrevi. Ainda assim, e apesar de a luta ser renhida, a escolher um vencedor no campeonato da desonestidade intelectual ele teria de ser Carvalho da Silva: conseguiu confundir citações com afirmações, suposições com factos e concluir que transformei “a personagem Marcelino da Mata quase em exemplo”. É obra.
Reparem: como qualquer pessoa com a quarta classe poderá verificar, o meu texto sobre Marcelino da Mata tinha como argumento a necessidade de conhecer o papel dos africanos na História de Portugal, dando como exemplo a sua extraordinária história de vida, desconhecida da generalidade do público. Em qualquer país civilizado já haveria uma série de televisão, dois filmes, três livros e quatro documentários sobre Marcelino da Mata. Em Portugal, não há nada. E uma das razões por que não há nada prende-se com gente como Vasco Lourenço e Carvalho da Silva, que confundem o campo da História com os seus quintais ideológicos.
O país está cheio de donos da História de Portugal, prontos a distribuírem reguadas por quem se atreve a sair da linha oficial. Como é óbvio, é possível que Marcelino da Mata tenha sido um herói de guerra, é possível que tenha sido um criminoso de guerra, e é até possível que tenha sido ambas as coisas, em momentos diferentes. Mas o meu texto nem sequer era sobre isso. Era sobre o desconhecimento generalizado de uma figura absolutamente invulgar, e sobre o que isso diz sobre o nosso lastimável trabalho de memória. Foi um herói? Contem-me. Foi um criminoso? Contem-me também.
Há dias comprei o livro de Irene Flunser Pimentel Os Cinco Pilares da PIDE. O capítulo introdutório intitula-se “Por que apresentar biografias de torturadores da PIDE/DGS?”. A autora afirma aí que quando publicou a biografia do inspector Fernando Araújo Gouveia foi criticada por estar “a dar importância ou até a enaltecer um torturador”, pois muitos consideraram que quem cometeu “actos de violência sobre presos políticos deveria ser remetido ao silêncio”. Recordar tais vidas – diziam – faria sofrer as vítimas. O argumento é estapafúrdio, mas Pimentel leva-o a sério, dando-se ao trabalho de explicar pacientemente que não, que não é assim, que escrever sobre um torturador até “contribui para denunciá-lo”, e patati patatá, como se os seus leitores estivessem no jardim-escola, e Hannah Arendt não tivesse escrito sobre Eichmann, Ian Kershaw sobre Hitler ou Robert Conquest sobre Estaline.
O problema não está nas explicações de Irene Pimentel, que estão certas. O problema está no facto de ter sentido necessidade de explicar-se. Essa necessidade demonstra bem o paternalismo na abordagem da História contemporânea, com um bando de historiadores armados em mestre-escola, empenhadíssimos no devido enquadramento das almas, não vá alguma delas lembrar-se de ressuscitar o cadáver de Salazar. Por amor da santa. Uma história é uma história é uma história. É para ser contada. Não é para ser pregada.