Orbán, Trump, Bolsonaro: como chegámos até aqui?
Mais do que em quaisquer outros recursos do Estado, é nos aparelhos securitários que a extrema-direita se quer infiltrar.
Bolsonaro sairá amanhã à frente na corrida para a 2.ª volta das eleições brasileiras – e eu sou dos que temo que seja mesmo eleito no próximo dia 28. Os Le Pen pai e filha já chegaram duas vezes à 2.ª volta das presidenciais francesas. Trump foi eleito presidente da maior economia e do maior arsenal de armas do mundo. A extrema-direita tem 15%-25% dos votos em meia Europa e, só na UE, dirige ou participa em governos de coligação de dez países (da Itália e Bélgica à Hungria e Polónia).
Há pelo menos 25 anos que este processo está em curso. Desde que a direita radical começou a assaltar o poder nos países pós-comunistas, que Berlusconi chegou ao governo aliado com a extrema-direita e que os EUA passaram a ter presidentes como Bush Jr. e Trump, que se discute se o clamor racista, xenófobo e o discurso do ódio e do Estado policial (e/ou da sociedade em armas) que se foi banalizando são ou não a versão séc. XXI do fascismo. Agora que também o Brasil pode somar-se à lista, perguntemo-nos como chegámos até aqui.
Antes de mais, o ponto a que chegámos é um estádio já avançado da transição autoritária por que está a passar o Ocidente pela segunda vez nos últimos cem anos (desde o fim da I Guerra Mundial). Ela segue efectivamente alguns dos passos que seguiu nos anos 1920 e 30: não pela via do golpe militar que rompia bruscamente com o regime mas pela via da transição legal para a ditadura. Sintoma central dessa transição é a degradação generalizada da qualidade do sistema democrático, adoptando, antes de mais, formas de reforço do poder executivo que violam constituições, atacam políticas sociais que se julgava terem-se tornado ganhos definitivos e violam tratados internacionais (suspendendo, como a França ou a Grã-Bretanha, a aplicação da Convenção Europeia de Direitos Humanos) e que são incompatíveis com a democracia. Não há fascismo sem emergência, sem que a maioria da sociedade acredite que vive em estado de emergência – social e económica por causa de uma crise, securitária por causa daquilo que lhe explicam ser uma guerra (contra “o terror”, por exemplo, ou, como no Brasil, contra “o crime”). É nesta emergência tornada permanente, e que parece não terminar nunca, que, ao mesmo tempo que se fragiliza ao extremo a vida dos mais pobres, dos sem poder, o Estado adopta medidas securitárias “extraordinárias”, concedendo poderes discricionários às polícias e aos serviços de informação, sem controlo judicial e democrático (tortura, invasão de domicílio, vigilância não autorizada...). O Estado e os media banalizaram um discurso autoritário contra a democracia (disfarçado, contudo, de preocupação com a “protecção da democracia”) que defende que a lei não protege os cidadãos, e por isso há que revogar direitos e liberdades cívicas dos “suspeitos” de pôr em causa a “segurança”, mas, dessa forma, generalizando a todos os cidadãos a retirada desses direitos e dessas garantias. O discurso da paranóia securitária, não só culpabiliza minorias étnicas e grupos sociais inteiros (que podem ir dos muçulmanos em países ocidentais aos pobres e favelados no Brasil, suspeitos de parasitarem o Estado e de serem ameaças potenciais de roubo e violência), como justifica suspender, na prática, a democracia.
É por isto que, mais do que em quaisquer outros recursos do Estado, é nos aparelhos securitários que a extrema-direita se quer infiltrar. Como se percebe bem pelas denúncias do Conselho da Europa sobre a polícia portuguesa, ou pelo que se passou recentemente na Alemanha, os neofascistas nem sequer precisam de chegar ao poder e nomear ministros para atingir este fim. Da Rússia às chamadas democracias consolidadas ocidentais, nas Américas ou em Israel, muita gente no topo destes aparelhos na Europa partilha os mesmos mitos dos neofascistas dos nossos tempos: que está em curso uma “invasão demográfica” (muçulmana, africana...) do Ocidente, feita por homens e mulheres que são “inassimiláveis”, que vêm ofender “o nosso modo de vida”, os “valores cristãos” e/ou “tradicionais”. Outra versão desta construção do “inimigo interno” é aquela que nos últimos anos regressou em força ao Brasil, aos EUA, mas também à Europa: a de que há uma conspiração (escolha-se o adjectivo) “cosmopolita”, “marxista”, “politicamente correta” contra “a família”, a “tradição” ou a história e os “heróis” nacionais – como há dias se achou, de forma muito reveladora, que o Conselho da Europa estava a fazer com Portugal...
O fascismo nunca triunfa só com fascistas. Os que lhes emprestam credibilidade (e lhes dão o voto) é que são o problema. Um dia acordamos com eles no governo. A criar raízes.