Governo quer acabar com reforma obrigatória aos 70 anos na função pública
Legislação que obriga funcionários públicos a aposentarem-se quando chegam aos 70 anos tem quase um século. Há dois anos, o Parlamento aprovou uma recomendação para pôr fim a este limite. Agora, o Governo prepara-se para avançar com a alteração desta regra.
O Governo quer mudar a lei que obriga os funcionários públicos a aposentar-se quando completam 70 anos. A reforma compulsória por limite de idade é uma regra com quase um século, tem sido criticada por várias personalidades nos últimos tempos e deu até origem a um projecto de resolução que recomenda ao Governo que ponha fim a este regime. A proposta foi aprovada pelo Parlamento em 2016, com os votos a favor do CDS-PP, o PSD e o PS, e a posição contra dos partidos de esquerda.
Agora, o Governo prepara-se para alterar este regime. Questionado pelo PÚBLICO sobre se está prevista alguma iniciativa para concretizar a recomendação da Assembleia da República publicada no final de 2016, o gabinete do ministro das Finanças, que tem a tutela desta área, adiantou que está “a ultimar o projecto de diploma” para equiparar o regime do sector público ao do sector privado. Este regime permite, a quem quiser e com a concordância da entidade patronal, continuar a trabalhar depois dos 70 anos. O gabinete de Mário Centeno não adiantou mais detalhes, mas a questão deverá ainda ser debatida com os representantes das estruturas sindicais, alguns dos quais já manifestaram reservas à alteração.
Quando a obrigatoriedade de sair aos 70 anos foi instituída na administração pública nos anos 20 do século passado, a maior parte das pessoas não chegava, sequer, a essa idade, lembra o cirurgião Manuel Antunes, que, em Julho passado, foi forçado a abandonar aquele o Centro de Cirurgia Cardiotorácica dos hospitais de Coimbra que dirigiu durante três décadas. Aos 70 anos, o experiente cirurgião e professor universitário está agora disponível para trabalhar no sector privado, onde este limite não existe, como adiantou ao PÚBLICO.
Remonta a Julho de 1926 a primeira legislação que estipula a saída dos serviços públicos aos funcionários que ultrapassem os 70 anos. “Arredar os ineptos pelo progresso dos anos é um benefício necessário para a administração”, justificava então o legislador.
Mais tarde, em 1929, tinha António de Oliveira Salazar a pasta das Finanças, um decreto veio reforçar a ideia e explicitar que as qualidades necessárias a quem serve na administração pública “só excepcionalmente se encontram em funcionários que tenham ultrapassado um certo limite de idade”, porque habitualmente “o espírito de iniciativa desaparece para ceder o lugar à rotina”.
Nessa altura, o Estado estava também proibido de contratar funcionários com mais de 35 anos. O decreto foi revogado entretanto, houve várias alterações, mas o primeiro, de 1926, manteve-se e, mais de nove décadas depois, a regra continua a ser a saída obrigatória aos 70 anos. Há excepções, mas são raras. Já para cargos políticos não há limite de idade — é paradigmático o caso de Mário Soares que se candidatou pela terceira vez à Presidência da República já depois dos 80 anos.
Na discussão gerada em torno deste assunto, os críticos do fim da aposentação compulsória por limite de idade alegam que é fundamental o rejuvenescimento dos quadros da função pública, enquanto os defensores enfatizam que as aceleradas alterações demográficas tornam a saída forçada ainda mais difícil de compreender, uma vez que a esperança de vida não tem parado de aumentar e a própria idade legal de reforma tem vindo progressivamente a estender-se — está agora nos 66 anos e quatro meses.
Este foi, aliás, um dos argumentos em que o CDS-PP se baseou para, em Maio de 2016, apresentar um projecto de resolução para acabar com a saída forçada. A proposta estava integrada num pacote com quase duas dezenas de vários projectos de resolução e projectos de lei centrados no envelhecimento activo e na protecção dos mais idosos. PSD espera que "o Governo, através de decreto-lei, legisle e altere o estatuto de aposentação dos funcionários públicos".
Na exposição de motivos, os deputados lembravam que Portugal tem “uma das estruturas etárias mais envelhecidas entre os 28 Estados da União Europeia” e destacavam as diferenças do regime laboral português — que permite, a quem trabalha no sector privado, prolongar a actividade para além dos 70 anos, caso o pretenda, ao mesmo tempo que nos serviços públicos o impede “categoricamente”. No sector privado, os trabalhadores que atinjam os 70 anos, se houver concordância da entidade patronal, podem assinar um contrato renovável a termo de seis meses.
Esta “diferenciação” restringe “um direito a quem trabalha para o Estado”, criticaram os deputados centristas. “Muitos destes funcionários públicos deparam-se bruscamente com a obrigatoriedade da reforma, apesar de se sentirem aptos para continuarem a trabalhar e, em alguns casos, necessitarem mesmo de trabalhar, quer seja por razões psíquicas, económicas ou de outra índole qualquer.” Um “choque” que “pode ser muito prejudicial, inclusive em matérias de saúde”.
Saída “abrupta”
À frente do serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria (Lisboa) ao longo de quatro décadas, Daniel Sampaio, que deixou o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em Setembro de 2016 por limite de idade, está no grupo dos que consideram que a saída não devia ser “abrupta”. “Dirigi o serviço até aos 69 anos e 364 dias, até às 6 da tarde. No dia seguinte, estava reformado”, conta o psiquiatra para quem, a haver um limite indicador, este poderia ser o de “75 anos”.
Também faria sentido, advoga, que alguns funcionários pudessem continuar nos serviços públicos como consultores. “Teria sido bom para o meu sucessor que eu tivesse ficado mais algum tempo para ajudar à transição”, acredita o médico, que lembra que, muitas vezes, profissionais experientes saem dos serviços públicos sem que haja alguém para os substituir de imediato.
“Felizmente com múltiplas actividades” — continua a exercer no seu consultório e faz formação em terapia familiar —, Daniel Sampaio frisa ainda que os 70 anos de hoje não se podem comparar com os 70 anos do passado. “Se uma pessoa tiver saúde, se estiver na posse plena das suas faculdades, não deveria ter de sair compulsivamente.”
Há quem discorde, porém. Director-geral da Saúde durante 12 anos, Francisco George deixou o cargo em Outubro do ano passado por limite de idade, mas é um dos poucos que acredita que esta regra não devia ser alterada. “Na administração privada quem tem mais acções é quem mais ordena. Mas a administração pública não é uma empresa privada. É uma empresa com 10 milhões de accionistas. Faz todo o sentido que os titulares de cargos dirigentes dêem lugar aos mais jovens, os lugares não podem ser vitalícios”, observa.
Para o ex-director-geral da Saúde, “ficar eternamente num cargo é que pode ser um desperdício”. Se alguém considerar que continua em condições para trabalhar, “pode sempre concorrer a outros lugares no sector social ou no privado”, reflecte. Foi o que ele próprio fez. Optou pelo sector social e humanitário e é agora presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, um cargo que exerce “sem remuneração”. Depois de 44 anos de serviço público, acredita que as poucas excepções que existem a esta norma é que “são condenáveis”. “A saída é saudável, é a altura de encontrar outro caminho. Há quem dê em escritor, pintor, dirigente de organizações humanitárias”, diz George, que admite não excluir uma futura ida para a política.
Vivemos muito mais
Sem querer ser olhado como um exemplo nesta discussão, até porque tem 88 anos, o médico Gentil Martins é uma das personalidades que mais se têm batido contra esta barreira etária. “Actualmente vivemos mais 20 anos do que quando o limite dos 70 anos foi instituído”, recorda o homem que ficou famoso por ter separado gémeos siameses e que foi “obrigado” a sair da Faculdade de Ciências Médicas e do Hospital D. Estefânia, em Lisboa, há quase duas décadas.
Ainda no activo, apesar de operar cada vez menos, Gentil Martins defende que a aposentação aos 70 anos deveria ser opcional e não compreende que exista idade estipulada para a reforma. “Não acredito que uma pessoa com 66 anos esteja gagá. Haverá pessoas com 60 anos que estão gagás, mas há outras com 70 ou 80 anos que estão muito bem”, reflecte.
Quanto ao necessário rejuvenescimento da administração pública, o cirurgião sustenta que “não será por eliminar o mais velhos que se vai dar lugar aos mais jovens”. E pede: “Deixem as pessoas trabalhar enquanto estiverem bem.” No sector da saúde, competirá à Ordem dos Médicos verificar se os profissionais “estão ou não em condições”, propõe.
Gentil Martins conta que reduziu bastante a sua actividade, apesar de as mãos não lhe tremerem e de a visão estar boa, desde que foi operado às cataratas e deixou de ter que usar óculos. “O que já não faço são cirurgias ao nariz”, exemplifica o médico que também fazia cirurgia plástica e que diz ser agora muito procurado para “segundas opiniões”.
"Sentimento de inutilidade”
Esta “bitola rígida cria um sentimento de inutilidade” e a “desestruturação da rotina pode ser altamente perniciosa”, avisa Ricardo Pocinho, especialista em envelhecimento activo, para quem o ideal seria “permitir que uns trabalhem e que outros se ausentem” no momento em que acharem que isso faz sentido. “Sou absolutamente defensor da liberdade de escolha”, acentua o investigador que acredita que a reforma deve ser decidida de acordo “com as necessidades do Estado e os interesses da pessoa”.
De resto, critica, num dos países mais envelhecidos da União Europeia e até do mundo, quando o Estado faz um investimento substancial no desenvolvimento das carreiras de alguns funcionários de topo, “não se compreende que depois, por decreto, sem ter em conta as especificidades das profissões, os obrigue a sair”, por vezes quando estão no “auge da carreira”. “Quem fica a perder é o Estado”, sentencia.
Trabalhar também pode ser para muitas pessoas sinónimo de uma vida feliz, argumenta. Cita um estudo de um psicanalista alemão que concluiu que apenas 30% das pessoas estão felizes depois de se aposentarem, apesar de muitos indivíduos, quando estão no activo, se referirem ao trabalho como "uma máquina de tortura". "Há quem diga de manhã que vai para o Tarrafal ou para o pica-boi", ironiza.
Notícia corrigida no dia 17 de Agosto. As declarações que constam do último parágrafo da notícia foram, por erro, inicialmente atribuídas a Gentil Martins, quando são da autoria de Ricardo Pocinho.