“Preciso da luta para me sentir remoçar”
A escola primária, a desilusão com a vida partidária, a morte da mulher e da filha. A poucos dias de deixar a Direcção-Geral da Saúde e à beira de dobrar os 70 anos, Francisco George recua uma vida. Haveremos de voltar a ouvir falar dele. Na Cruz Vermelha, provavelmente.
1 a 0 para o PÚBLICO. Francisco George chegou quase uma hora atrasado à entrevista, o que quase justificaria o ricochete da britânica ironia com que costuma atirar aos jornalistas que pontapeiam a pontualidade: “Olhe lá, mas quer que lhe ofereça um relógio?” Quase, porque Francisco George telefonou várias vezes a avisar do atraso. Quase, porque qualquer inquérito pelas redacções deste país confirmaria a veracidade do que diz quando diz: “Atendo sempre os jornalistas, a qualquer hora do dia, porque acredito que não há regime democrático sem jornalismo e sem uma comunicação social inteiramente livre. E em saúde pública com mais razão ainda porque a base da saúde pública é conseguir transmitir informação aos cidadãos para que estes possam tomar decisões.”
Fosse este um perfil à la minute do homem que, ao fim de 12 anos, se prepara para abandonar o cargo de topo da Direcção-Geral da Saúde (DGS), a imagem síntese seria aquela em que aparece sentado à secretária no seu gabinete do 8.º andar da DGS com dois telefones ao ouvido e outro na mão. É de 2014 esta fotografia, estava o país em sobressalto por causa do surto de legionella em Vila Franca de Xira que provocou 12 mortes e infectou 375 pessoas. Na altura, poucos portugueses escaparam de o ver entrar pelos ecrãs em suas casas para, “sem alarme mas sempre alerta”, como é seu lema, informar sobre os riscos para a saúde pública.
“É um comunicador fantástico”, elogia Correia de Campos, um dos sete ministros que passaram pela pasta da Saúde com George à frente da DGS. Alguém que, acrescenta outra ex-titular da Saúde, Ana Jorge, “não tem medo de falar e se aproxima das pessoas quando comunica”. No caso da legionella, como noutros momentos de crise que exigiam reacção urgente, George “conseguiu domesticar os media”, ainda segundo Correia de Campos. “Quando lhe ligavam, queriam respostas rápidas, imediatas e fáceis. E ele respondia sempre muito pausadamente, exigia tempo para responder. Ensinou os media a respeitar a sua função didáctica e ganhou a confiança da opinião pública”, acrescenta.
Hoje, no seu gabinete com paredes forradas a madeira, de frente para uma tela do pintor José de Guimarães, George conta que aquelas foram as duas semanas mais difíceis destes 12 anos. “Houve uma equipa que se instalou no posto de comando da DGS e, durante 48 horas, ninguém saiu dali. Epidemiologistas, especialistas em saúde pública, engenheiros, meteorologistas: as pessoas estavam a ficar doentes por respirar o ar atmosférico e, portanto, era preciso tratar os doentes e identificar rapidamente a fonte das bactérias.” Agora, à beira de deixar o cargo por completar os 70 anos que a lei impõe como limite para a aposentação obrigatória, revela que recusou o apoio da Organização Mundial de Saúde (OMS) na gestão daquele que viria a revelar-se um dos três piores surtos da doença dos legionários de que há notícia no mundo. “Disse-lhes que sabíamos conduzir este trabalho e que se quisessem viessem mas sem intervir. E assim aconteceu.”
Demonstrada a relação entre os casos clínicos e os aerossóis de uma torre de arrefecimento fabril, e debelada a crise, Paulo Macedo, que era então o ministro da Saúde, chama-o e à sua equipa ao gabinete ministerial onde os aguardavam garrafas de champanhe. “É um servidor público no melhor sentido do termo. Dedicado, íntegro, sabedor, respeitado pelos pares e pela comunidade”, descreve agora ao P2 o actual presidente da Caixa Geral de Depósitos o homem com quem trabalhou de perto entre 2011 e 2015, elogiando-lhe o “optimismo e espírito construtivo”, a par da empatia e da curiosidade.
Há quem atribua esta capacidade de entendimento com os diferentes ministros como sintoma de que George não é de levantar ondas nem de criar inimigos. O “amigo de sempre” e antigo professor Correia de Campos reconhece-lhe o fair play e o instinto diplomático e até diz que, sendo irreverente, George “é um irreverente comedido que nunca rompe relações ou ligações”. Mas garante que a sua longevidade no cargo assentou na sua “enorme competência técnica” e na “incondicional dedicação”. De resto, “quando foi para a DGS, soube despir-se de preocupações e interesses partidários e assumir-se como um grande funcionário do Estado”.
Gerir e prevenir
O surto de legionella não foi a única crise que Francisco George enfrentou a partir deste gabinete na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa. Proibição de fumar em espaços públicos, Gripe A, a crise provocada pelo altamente letal vírus ébola, com muitos profissionais de saúde a reclamar máscaras e fatos de protecção, e a hepatite A e o surto de sarampo, em 2017, foram momentos igualmente exigentes. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva, acompanhou-o em muitos destes episódios, muitas vezes do outro lado da barricada. Foi das poucas vozes abertamente críticas da gestão de George em casos como a regulamentação das terapêuticas alternativas, a manutenção da Linha de Saúde 24 e mesmo no surto de legionella. “A DGS falhou. Não na gestão da crise, mas na sua obrigação de a prevenir”, acusa José Manuel Silva, para quem, “sabendo-se quais são as fontes emissoras da legionella, não é admissível que as normas de controlo dessa fonte sejam aligeiradas”. Mesmo considerando que tal competência recai sobre o Ministério do Ambiente, o ex-bastonário recorda que “cabe à DGS avaliar as consequências para a saúde das normas elaboradas pelo Governo”.
Quanto à Linha de Saúde 24, criada numa altura em que se impunha colmatar a enorme falta de médicos de família, José Manuel Silva considerou-a uma “caixa registadora” destinada a fazer dinheiro, quando essencial é garantir o acesso presencial de todos aos cuidados primários. Ao P2, o ex-bastonário mantém que Francisco George nunca demonstrou vontade de “analisar a situação e promover uma auditoria independente ao sistema”. No tocante à regulamentação das terapêuticas alternativas, limita-se a apontar-lhe a “incongruência”: “Como é que é possível a DGS defender as vacinas e ter um plano nacional de vacinação e depois acolher pessoas que são detractoras dessas mesmas vacinas e que levantam dúvidas sobre a sua eficácia?”
Longe de estar imune às críticas, George limita-se a dizer que registou as divergências, mas continua convencido de que a razão esteve do lado da DGS. Faz um mea culpa, sim, mas para confessar “um certo insucesso” na gestão da gripe das aves, garantindo que a aquisição posterior de doses maciças de Tamiflu para combater a pandemia de gripe A era incontornável. “Era uma decisão europeia e não podíamos fugir dela. Então 27 países tinham decidido adquirir o Tamiflu e nós armávamo-nos em mais espertos e não o adquiríamos? O que diria a imprensa?” A então titular da Saúde, Ana Jorge, garante que, se Portugal não registou nenhuma situação complicada relacionada com a gripe A, isso se ficou a dever “à campanha de prevenção primária a sério promovida pela DGS”. De outro modo, assume, "teríamos tido problemas e não apenas casos isolados e bem controlados como tivemos”.
O episódio do relógio evidencia um humor que por vezes ronda um certo nonsense a atirar para Monty Python e pode desarmar ou deixar desconfortável quem está à volta. A dada altura, durante as mais de três horas que durou esta entrevista, quando intui um tom de acusação numa pergunta, dá um pulo na cadeira para chamar quem calhou estar naquele momento na sala ao lado, para ajudar a traçar-lhe o perfil. “É muito determinado. É preciso sempre muita força para o contrariar, sobretudo porque ele sabe o que está a dizer, mas também sabe dar a volta para trás. E é fogoso, no sentido de, se é para fazer, então que se faça já”, descreve a epidemiologista Paula Vasconcelos. “Não tem muita paciência para as pequeninas convenções. É o oposto da burocracia e da hierarquia. Se sabe que pode ‘furar’ um canal pegando no telefone, quebra a hierarquia que for preciso”, confirma Cristina Abreu, chefe do centro de emergências em saúde pública da DGS, para lhe colar outro rótulo: o de impaciente. “Não tem paciência para a má educação, para pessoas desagradáveis. E, cá dentro, se alguém lhe pergunta se pode fazer não sei o quê, a resposta é sempre: ‘Ó minha senhora, seja proactiva. Já devia ter feito!’ Essa frase, ‘seja proactiva’, anda-nos sempre na cabeça. Ele tem esta impaciência de não deixar para amanhã. Uma espécie de sentido de urgência.”
Entre Ben-Hur e Rio Bravo
Francisco George nasceu cinco minutos depois do seu irmão gémeo, em Outubro de 1947. Há uma foto em que surgem os dois ao colo da mãe, muito antes de o pai ter mandado o irmão, hoje empresário, estudar Belas-Artes para Inglaterra, por estar convencido de que a separação os beneficiaria no desenvolvimento. Foram o terceiro e o quarto, numa família de cinco irmãos. O pai, Carlos George, era um reputado médico de medicina interna, descendente de ingleses radicados em Portugal há várias gerações. A mãe, Isabel, nasceu e cresceu protegida pelos muros da alta burguesia lisboeta, educada para falar francês e tocar piano. Apaixonaram-se porque viviam em casas voltadas uma para a outra. “Fomos educados com muitas regras. As formalidades à mesa eram muito rígidas e sempre pensei que um dia haveria de fazer diferente, de dar mais liberdade e menos regras. Mas alguns dos hábitos de família mantenho-os. Por exemplo, um hábito que o meu avô tinha de fazer perguntas de cultura geral, quizzes. Se perguntar à minha neta como se chamam as árvores que dão nozes, ela responde logo. Isso tem passado de geração para geração.”
A casa dos pais ficava por cima de uma farmácia, em Campo de Ourique, e é para lá que viajam as memórias mais recuadas que tem da infância. “Ficava a contemplar o farmacêutico a preparar remédios na bancada.” Impressionavam-no o seu ar sábio, a sequência de gestos para manobrar a balança de precisão, o alinhamento dos frascos e dos almofarizes. Quando não estava lá, entretinha-se a apanhar paus de fósforo do chão para juntar as folhas amareladas das seringueiras do Jardim da Parada. “Fazíamos coroas para imitar os índios em jogos de toca e foge”, recorda.
Mas isso foi antes de ir para a escola, em 1952. N’O Lar da Criança, aprendeu música e canto coral, além das letras e da aritmética. Entre os colegas de escola, figuravam outros alunos que mais tarde haveriam de, como ele, ver repetido o nome pelos jornais: Marcelo Rebelo de Sousa e o médico Eduardo Barroso. Quando transitou para o Liceu Pedro Nunes, o pai, ateu e agnóstico assumido, preencheu um requerimento que o livrava das aulas de Religião e Moral. Nessa altura, da janela do seu quarto, Francisco George via as mulheres que se deslocavam à tabacaria em frente para consertar as meias de vidro. E, numa época em que o porte de um simples isqueiro de bolso exigia licença, sobressaltava-se com a gritaria que a proximidade da polícia provocava entre os vendedores que vendiam flores, fruta, legumes e até pintassilgos pelas ruas de Campo de Ourique.
Então, a prisão de um tio materno em Caxias por motivos políticos aguçara-lhe a consciência política. O suficiente, pelo menos, para ter noção do que estava em jogo em 1958, na campanha de Humberto Delgado, cujas tarjetas apareciam de manhã coladas às vidraças das montras. Sabia já então do agente da PIDE que vivia em frente a sua casa. Mas, deslumbrado pela licença que os 12 anos lhe concediam para entrar nas salas de cinema, o que o movia então era o fascínio pelas corridas de cavalos de Ben-Hur e os trejeitos de John Wayne em Rio Bravo.
O seu primeiro “acto político” — descreve — surgiu pouco depois, em 1961, quando aderiu, como tesoureiro, à recolha de fundos para a compra da nova rotativa para o jornal República. “Comecei por contribuir com 20 escudos, que era um valor considerável, e organizei o peditório conforme pude. Se calhar vem daí a minha aliança com a imprensa”, brinca. O pensamento político democrático formava-se também com a ajuda de Correspondência de Fradique Mendes, o livro de Eça de Queiroz que um irmão mais velho lhe depositara nas mãos com a incumbência de o ler. Tinha 13 anos e desses tempos sobram-lhe memórias da amizade com os dois irmãos Sampaio, Jorge e Daniel, não só porque eram vizinhos em Campo de Ourique mas porque costumavam juntar-se na Praia das Maçãs. “Lembro-me de que o Ferreira de Castro, uma figura inesquecível que todos sabíamos que tinha escrito aquele grande best seller chamado A Selva, também ia para a praia, sempre vestido de casaco e calças, debaixo de um toldo. A filha dele, a Elsa que, aliás, é médica, fazia parte do nosso grupo. Era uma figura inesquecível, muito activa, com os olhos muito azuis. Todos a disputavam.” E quem ganhou? “Tenho um irmão que perdeu”, responde.
Os professores que lhe organizaram o pensamento
Desses anos ficou-lhe cravada a influência de Avelino Cunhal, seu professor de Filosofia. “Era muito parecido com o filho e muito marcante”, descreve. Quando, em Janeiro de 1960, chega lá a casa, via Rádio Moscovo, a notícia da espectacular fuga de Álvaro Cunhal da prisão de Peniche, George não resiste a falar disso com o professor. “Disse-lhe: ‘Olhe, o meu pai disse-me que o seu filho conseguiu fugir. Um abraço para si.’ Ele subiu a escada em silêncio, comovido, com um braço por cima de mim. Não sei se já saberia ou não…” Foi uma forma de agradecer ao professor que diz ter-lhe ensinado a organizar o pensamento. “Ainda hoje, quando surgem problemas na DGS, chamo o pessoal para a sala do 9.º andar e pomo-nos a discutir: quais são as perspectivas, as hipóteses, as alternativas. Que estratégia vamos seguir?”
Outra figura que o ajudou a traçar o caminho foi Arnaldo Sampaio, professor, pai dos seus amigos e o primeiro director-geral da Saúde. Foi com ele que se reuniu quando, já em formação para a especialidade em medicina interna como o pai, no hospital de que o pai era director, decide mudar de rumo para se demarcar do percurso paterno. “Queria fugir [do meu pai] e a alternativa tinha de ser diametralmente oposta, sabendo eu como sabia que ele apoiaria a vocação de qualquer filho. No princípio de 1976, vim ter a este gabinete com Arnaldo Sampaio e disse-lhe que queria sair do [hospital] Santa Marta e que contasse comigo para a saúde pública. Ele consultou as vagas e disse-me os locais para onde estava em condições de me nomear provisoriamente. Quando me falou em Cuba, no Alentejo, disse-lhe logo que sim. Nunca lá tinha ido, mas um irmão do meu pai era arquitecto e estava muito ligado a Cuba e eu sempre tinha ouvido histórias daquele lugar.”
As Nações Unidas em Cuba, Alentejo
Jovem, magro, bigode e cabelo preto a formar uma onda na testa e com o francês e o inglês na ponta da língua, Francisco George funcionava bem como símbolo dos avanços da Saúde em Portugal no pós-25 de Abril. Numa altura em que os centros de saúde começavam a surgir como cogumelos por todo o território nacional, em Cuba, George distribuía conselhos sobre higiene individual e colectiva, além de frascos com cloreto de sódio para travar a epidemia de cólera. As grandes obras de saneamento básico ainda eram uma miragem e a água era desinfectada por métodos muito artesanais. “Na altura, o país era muito visitado por estrangeiros que vinham das Nações Unidas para perceber a construção do SNS e o professor Arnaldo Sampaio fazia-lhes um itinerário que normalmente incluía Cuba.” Granjeou aí contactos que foram determinantes para a sua contratação como funcionário da OMS, entre 1980 e 1991. Nos anos seguintes, construiu um currículo de fazer inveja. Andou em Bissau e Harare, foi consultor em Pequim, Xangai, Brazzaville, Genebra, Rio de Janeiro, Maputo. Em 1980, foi nomeado chefe de projecto da OMS de Desenvolvimento dos Serviços de Saúde na Guiné-Bissau, onde passaria os seis anos seguintes.
Em 1990, surge já como epidemiologista do programa Mundial de Luta Contra a Sida da OMS e, a partir de Harare, viu aldeias inteiras serem varridas do mapa pela doença. Dois anos depois, regressa finalmente a Portugal. O cargo que lhe coube, após concurso de provas públicas, empurrou-o novamente para o Alentejo, desta vez como delegado de saúde de Beja. A luta contra o VIH/Sida, que também cá se impunha, leva-o a lançar o projecto “Gabardine”, para incentivar as raparigas a munir-se de preservativos. É desse tempo e é da sua responsabilidade o anúncio radiofónico que fez furor entre os alentejanos em que uma mãe, de sotaque a condizer com a região, aconselhava a filha: “Vê lá, não esqueças as camisinhas na tua mala.”
Lá, deixado para trás um breve flirt com o PCP que anos antes lhe valera uns dias na prisão de Caxias, arriscou uma incursão na política via Federação do PS. Por dois mandatos foi eleito para a comissão nacional dos socialistas. São desses anos as fotografias em que surge ao lado de Ferro Rodrigues, Maria Rita e Daniel e Jorge Sampaio, em encontros informais, que ajudaram a congeminar a candidatura deste à Presidência da República. Mas, no que à sua participação directa na política diz respeito, o tom de George é de franca desilusão.
“O pior em termos pessoais”, escreveu mais tarde sobre esses tempos, “foi ter confirmado o ambiente inexplicavelmente fechado a nível partidário e constatado que o líder não pode ser confrontado por outros capazes de o ofuscarem”. A actividade política é definitivamente enterrada quando, em 2000, é convidado para trabalhar na DGS em Lisboa, na área da saúde ambiental. Quando o seu amigo de há muitos anos Correia de Campos substitui Manuela Arcanjo no Ministério da Saúde, George ascende ao cargo de subdirector-geral da DGS e, em 2005, ao de director-geral de uma estrutura que então somava 320 funcionários e quatro subdirectores-gerais, além de sete directores de serviço e 21 chefes de divisão. A DGS encolheu entretanto para os 140 funcionários.
“A love like ours never dies”
Francisco George levava um ano como director-geral quando atravessou um dos momentos mais traumáticos da sua vida: a morte da mulher e da filha. Tinha conhecido Maria João num comboio a caminho de Cambridge para onde ia de visita ao irmão gémeo que fora estudar Belas-Artes para Inglaterra. Era o Verão de 1964. Apesar do abalo que representara a espectacular fuga de Álvaro Cunhal e dos seus companheiros de Peniche, Salazar mandava e censurava quem se opunha ao regime e à guerra colonial, que ia no terceiro ano. Ainda o slogan “nem mais um soldado para as colónias” estava longe de se fazer cumprir.
Lá fora, com o mundo dividido em dois blocos, os primeiros passos de Neil Armstrong na superfície lunar estavam em fase de ensaio, enquanto, com o Maio de 1968 perto de acontecer, as mulheres se iam libertando de alguns espartilhos, à boleia da disseminação da pílula. Era este o pano de fundo quando Francisco George, 16 anos e a primeira barba a despontar, pousou pela primeira vez o olhar na mulher que só viria a largar 42 anos e três filhos depois. “Ela estava à minha frente, com uma prima. Viajámos juntos e, enfim, agradou-me a conversa com ela, a ponto de dizer ao meu irmão: ‘Olha, a Maria João é óptima. Parece-me muito bem.' O meu irmão não percebeu, íamos ter com umas inglesas, e perguntou-me qual era a minha pressa. Respondi-lhe que não era uma questão de pressa, mas de sentimentos.”
Não se enganou. Seis anos depois, casavam. Maria João, filha do arquitecto João Simões que projectou o antigo Estádio da Luz e a Casa da Moeda, viria a notabilizar-se ela própria enquanto arquitecta responsável pela reinstalação da Aldeia da Luz, se calhar à força de ter crescido a ver o pai gatinhar sobre os estiradores em que desenhava o estádio e por causa dos quais chegara a derrubar uma parede da sala.
Maria João surge luminosa numa fotografia que George mostra com orgulho. “Não sou muito batido em paixões, na verdade não sei muito bem o que é uma paixão, mas o gostar, o amar, o querer estar com, desejar que bata à porta e venha… isso aconteceu com a Maria João.” Do casamento entre os dois nasceram três filhos, o Gonçalo, a Catarina e a Alexandra. “Ela tinha sido uma aluna brilhante e a afinidade intelectual era imensa entre nós: os mesmos gostos de cinema, filosóficos… Atraía todos aqueles que estivessem com ela. E sobressaía. Sobressaiu sempre.” Souberam reinventar-se à medida que as solicitações profissionais os obrigavam a mudar de endereço. Em Cuba do Alentejo, na China e na Guiné-Bissau, depois Beja e depois novamente Lisboa, o casal nunca se separou. “Onde eu estava, ela estava. Só pontualmente ficámos separados e quase sempre porque os filhos estavam aqui ou ali…”
Em Portugal, na efervescência do pós-25 de Abril, Maria João envolveu-se no Serviço de Apoio Ambulatório Local, mistura entre arquitectura e participação directa, que procurava responder às necessidades habitacionais de populações desfavorecidas. “Dedicou-se muito à arquitectura de proximidade.” Mas a frase que a resume mais completamente está num texto que George lhe dedicou: “Maria João encantava-se com o mundo exterior. Urbano ou rural. Descrevia e retratava em pequenos desenhos o que mais a interessava. Olhava pormenores em que os outros não reparavam. Reagia sempre para cima. Não conhecia o desânimo. Preferia ir em frente, empurrar e puxar todos. Cultivava a simpatia. Ouvia todos. Sorria para todos.”
“A relação entre o Francisco e a Maria João” — recorda Correia de Campos — “era muito saudável, muito igual e de muito respeito.” “Ela teve uma grande influência no Francisco e contribuiu para moldar o seu carácter. Ele era médico e alto funcionário e ela uma artista, cada um realizava-se profissionalmente sem depender do outro.” Terá sido ainda à mulher que Francisco George foi buscar forças para aguentar o que se passou a seguir. No dia 21 de Março de 2006, no ponto em que a estrada de Beja afunila para Lisboa, um despiste de automóvel mata Maria João e a filha Catarina que nesse dia completava 32 anos de idade. George aguardava-as em Lisboa para um jantar comemorativo. “A love like ours never dies” foi a inscrição que mandou gravar no mármore branco da campa, num recuo até aos tempos dos primeiros beijos trocados ao som dos Beatles. Quando voltou a casa do funeral, George encontrou o casaco cheio de comprimidos para dormir e apaziguar a dor que os amigos lhe tinham enfiado no bolso entre abraços. Garante que não tomou nenhum. E lá arranjou forma de continuar, de “ir em frente, empurrar e puxar todos”.
Mais do que um comprimido, a luta
O trabalho e a escrita funcionaram — e funcionam — melhor do que qualquer comprimido. “Escrever é a minha ocupação artística. Há quem pinte, quem escreva contos… A minha actividade de fim-de-semana e de férias é escrever memórias”, precisa. É fácil apanhar o fio da sua vida no site www.franciscogeorge.pt, onde perora sobre os antepassados, a mulher, o aborto, os seus antecessores na DGS, o futuro da saúde em Portugal. A frase que dá mote a tudo isto foi roubada ao escritor José Rodrigues Miguéis: “Preciso da luta para me sentir remoçar.” “A luta é fundamental. Preciso de estar em luta por objectivos, por mais saúde, pela melhoria das condições de vida, contra as doenças evitáveis, o excesso de peso, a tuberculose, as iniquidades em saúde”
Por precisar desse combustível, perfilou-se como candidato na corrida à presidência da Cruz Vermelha Portuguesa, cadeira que conta poder ocupar assim que deixar a da DGS. No dia 19 de Outubro, às 19h, vai colocar a sua fotografia na galeria dos directores da DGS e no dia seguinte fará uma intervenção sobre os seus 44 anos de serviço público na reitoria da Universidade Nova, em Campolide, depois de passar a pasta a quem lhe suceder no cargo. No dia 21, completará os 70 anos de idade e, a partir de então, o seu nome deverá ser aprovado para dirigir um organismo que integra 149 delegações locais, 85 mil membros e 11 mil voluntários. “Ficar em casa, ver televisão, ler, ir ao cinema, não é suficiente. Não para mim”, justifica-se, propondo-se continuar a lutar para reduzir as iniquidades que levam a que, por exemplo, a esperança de vida em Portugal continue a ser mais alta nas famílias com altos rendimentos. “Este tipo de iniquidade tem uma carga de imoralidade que não pode ser aceite nem tolerada”, repete, recuperando assim uma das ideias fortes do discurso que fez quando assumiu a liderança da DGS.
Durante a entrevista, que durou quase três horas, Francisco George adia vários telefonemas, para garantir que nenhuma pergunta ficava por responder. “Está tudo? Era isto que queria?” 1 a 0, para Francisco George.