E se a Europa se desmoronasse e entrássemos em guerra?
“E se Portugal estivesse em guerra. Para onde ias tu?” Foi partindo desta suposição que a escritora dinamarquesa Janne Teller escreveu a versão portuguesa de Guerra – E se Fosse aqui?, uma história sobre refugiados que acaba de chegar às livrarias.
Em 2001 os partidos de direita ganharam uma forte expressão eleitoral na Dinamarca, e o assunto dos refugiados entrou, inevitavelmente, na agenda política. “Mesmo pessoas conhecidas pela sua tolerância debatiam este assunto de modo quase fanático.” Quem o diz é a escritora dinamarquesa Janne Teller (n. 1964) em conversa com o PÚBLICO na sua passagem por Lisboa a propósito da chegada às livrarias do seu livro, Guerra – E se Fosse Aqui? (ed. Bertrand).
“Quis então escrever um texto ficcional sobre o que é ser refugiado, sobre aquilo que somos depois de perdermos o controlo sobre as nossas vidas devido a uma guerra.” Confessa que este assunto a toca particularmente, talvez por ser originária de uma família de “refugiados europeus” da Segunda Guerra Mundial (de ascendência austríaca e alemã). Na altura, pensou escrever uma história com uma qualquer família iraquiana, mas depressa percebeu que seria apenas mais uma história como tantas outras e que seria difícil chegar com ela às pessoas da maneira que pretendia. Então surgiu-lhe a ideia de “e se os países nórdicos estivessem em guerra?”, como tantas vezes aconteceu na sua História. Esse pequeno texto ficcionado foi publicado numa revista para professores. Mas em 2004 uma editora dinamarquesa decidiu publicá-lo com o formato de um livro-passaporte, a que acrescentou algumas ilustrações.
Janne Teller: "E se a guerra fosse aqui?" from Público on Vimeo.
O livro foi bem recebido de imediato. As poucas vozes críticas, entre as quais a do ministro do Interior dinamarquês à época, apontavam a situação descrita no livro como irrealista. Mas Janne Teller, que em Portugal tem também editado o seu livro Nada (ed. Bertrand), contesta: “Um dos meus anteriores romances é sobre o genocídio na Bósnia. Na altura, as pessoas também pensavam que a guerra nos Balcãs, com a dimensão que atingiu, nunca poderia acontecer. O que para mim é importante não é a possibilidade ou não de um conflito com a dimensão que descrevo, mas o poder que a literatura tem de provocar no leitor uma relação empática com a personagem. A literatura traz a sensação de individualidade. Deixa de ser a massa dos refugiados para ser apenas a história daquela personagem. Neste sentido, a ficção pode sobrepor-se ao poder das ciências sociais ou da política.” Sobre a questão de não ter optado por um registo mais ensaístico (Teller é também autora de vários ensaios no campo da “resolução de conflitos” e de questões humanitárias – trabalhou para as Nações Unidas e União Europeia) fez notar a possibilidade de refutação de argumentos no ensaio, o que não acontece na ficção – nesta ou “se sente ou não se sente”.
De certa forma, Guerra – E se Fosse aqui? pode ser considerado um texto político. Janne Teller discorda apenas em parte, dizendo que não o é quando lido como ficção, mas que a sua leitura mais aprofundada pode ter um impacto político. “Tomam-se melhores decisões políticas quando se percebe melhor os outros. Espero que este livro, com o seu sucesso de leitores, tenha essa virtude. No entanto, não procura dar solução alguma ao problema dos refugiados, mas apenas levar a que as pessoas sintam de maneira mais lúcida, com mais humanidade, essa condição.”
Cada país um livro diferente
A primeira possibilidade de tradução deste livro surgiu na Alemanha, mas de imediato o editor alemão pensou que o facto de o jovem refugiado ser dinamarquês e de a guerra descrita afectar a Dinamarca diminuiriam o seu potencial de chegar junto dos leitores alemães. E propôs que Teller reescrevesse a história alterando o cenário e dando a nacionalidade alemã à personagem. A autora concordou e a partir de então compõe uma nova versão adaptada (o mesmo acontece com as ilustrações) ao país onde o livro é publicado (sendo já cerca de 25). Na versão portuguesa, Portugal está em guerra com Espanha e com França, há algures um ditador, uma Polícia Unificadora, os espanhóis bloquearam o curso do rio Tejo na barragem espanhola de Alcântara, a maior parte da cidade de Lisboa (onde vive a personagem) foi destruída pelas bombas, não há água nem electricidade, há fome e há medo, o porto de Lisboa está fechado. Nesta quase distopia, a União Europeia desmoronou-se, e os únicos países onde há paz, são do outro lado do Mediterrâneo, os países árabes. Mas Marrocos, Argélia e Tunísia já fecharam as fronteiras aos europeus em fuga. Resta a hipótese de tentar chegar ao Egipto. Mesmo assim o jovem português arrisca: “Quando à meia-noite entras à pressa no camião que te vai levar a Faro e ao barco de pescadores alugado, só levas contigo o que cabe nas mochilas e foi autorizado pelos organizadores da fuga: uma muda de roupa e um único objecto.”
Janne Teller escolheu para personagens gente da classe média-alta, sem muito dinheiro, com estudos universitários, e pessoas respeitáveis na comunidade em que estão inseridos. Depois, dependendo dos países, dá-lhes um destino e um modo de fuga. Aos portugueses, espanhóis e franceses coube terem de atravessar o mar por barco. “Se fosse hoje, teria dado mais destaque à travessia do Mediterrâneo, mas quando escrevi o livro a questão da travessia não era ainda tão trágica”, justifica. Mais do que um livro sobre o fanatismo político, esta é uma história que tenta “humanizar a identidade do refugiado”.