A história de como o exército birmanês queimou, saqueou e assassinou numa aldeia remota
A 2 de Setembro, camponeses budistas e tropas birmanesas mataram dez homens de etnia rohingya no estado rebelde de Rakhine, na Birmânia. A Reuters divulgou o massacre e agora revela como tudo se desenrolou. Durante a realização da reportagem, dois jornalistas da Reuters foram presos pela polícia da Birmânia.
Amarrados uns aos outros, os dez prisioneiros rohingya viram os seus vizinhos budistas cavarem uma vala pouco profunda. Pouco depois, na manhã de 2 de Setembro, estavam todos mortos. Segundo relatos dos coveiros, pelo menos dois foram atacados à machadada por camponeses budistas, enquanto os outros foram mortos a tiro pelos soldados birmaneses.
“Uma sepultura para dez pessoas”, conta Soe Chay, de 55 anos e antigo combatente da comunidade budista de Inn Din, que diz ter ajudado a cavar a vala e assistido à matança. Afirma que os soldados deram dois ou três tiros em cada um dos prisioneiros: “Quando estavam a ser enterrados, alguns ainda faziam ruídos. Outros já estavam mortos.”
Os assassínios na aldeia costeira de Inn Din foram mais um dos episódios sangrentos da violência étnica que varre o norte do estado de Rakhine, na faixa ocidental da Birmânia. Desde Agosto, cerca de 690 mil muçulmanos rohingya fugiram das suas aldeias e atravessaram a fronteira com o Bangladesh. Em Outubro, já não sobrava em Inn Din nenhum dos seus seis mil habitantes rohingya.
Os rohingya acusam o exército de fogo posto, violações e assassínios, afirmando que as forças estatais estão a tentar apagar a sua existência deste país de 53 milhões de habitantes e de maioria budista. As Nações Unidas já declararam que o exército pode ter cometido genocídio, e os Estados Unidos falam em limpeza étnica. Por seu lado, a Birmânia afirma que a sua “operação de libertação” é uma resposta legítima aos ataques dos insurgentes rohingya.
Há séculos que os rohingya estão presentes em Rakhine, mas a maior parte dos birmaneses considera-os imigrantes indesejados do Bangladesh, e o próprio exército refere-se a eles como “bengalis”. Nos últimos anos as tensões sectárias aumentaram, e o governo confinou mais de 100 mil rohingyas a campos onde têm acesso limitado a alimentos, medicamentos e educação.
A Reuters reuniu informação sobre o que aconteceu em Inn Din nos dias anteriores ao assassínio dos dez rohingya – oito homens e dois estudantes ainda adolescentes. Até agora, os relatos da violência contra os rohingya partiam apenas das vítimas. A reconstrução da Reuters inclui, pela primeira vez, entrevistas com camponeses budistas que confessam ter incendiado casas rohingya, enterrado corpos e assassinado muçulmanos.
Este relato marca também a primeira vez que os soldados e a polícia paramilitar são implicados nestes violentos episódios por testemunhos das próprias forças de segurança. Membros da polícia paramilitar deram à Reuters detalhes sobre a operação para expulsar os rohingya de Inn Din, confirmando assim que os militares lideraram a campanha.
As famílias dos homens assassinados, hoje exiladas nos campos de refugiados do Bangladesh, identificaram as vítimas através de fotografias que lhes foram mostradas pela Reuters. Os mortos eram pescadores e comerciantes, além dos dois estudantes e de um professor que ensinava o Corão.
Três fotografias, fornecidas à Reuters por um ancião da aldeia budista, revelam momentos-chave do massacre em Inn Din, desde a detenção dos rohingya ao início da noite de 1 de Setembro até à sua execução, pouco depois das dez da manhã do dia seguinte. Duas das fotografias – uma tirada no primeiro dia e outra no dia dos assassínios – mostram os dez prisioneiros ajoelhados em fila. A terceira mostra os corpos ensanguentados, empilhados na vala comum.
A investigação da Reuters sobre o massacre de Inn Din levou as autoridades policiais birmanesas a prenderem dois dos jornalistas da agência. Wa Lone e Kyaw Soe Oo, cidadãos da Birmânia, foram detidos a 12 de Dezembro por alegadamente terem obtido documentos confidenciais relativos a Rakhine.
Depois, a 10 de Janeiro, o exército emitiu um comunicado que confirma parte do que Wa Lone, Kyaw Soe Oo e os seus colegas se preparavam para relatar, pois admite que dez muçulmanos rohingya foram assassinados na aldeia. Confirma ainda que camponeses budistas atacaram alguns dos homens com espadas e que os soldados mataram os outros a tiro.
O comunicado coincidiu com uma solicitação ao tribunal, por parte dos procuradores, para que Wa Lone e Kyaw Soe Oo fossem acusados ao abrigo da Lei dos Segredos Oficiais da Birmânia, uma lei que remonta ao domínio colonial britânico. Se condenados, podem enfrentar uma pena de prisão de 14 anos.
Contudo, a versão dos militares é contrariada, em aspectos relevantes, pelos relatos dados à Reuters tanto por testemunhas budistas como rohingya. O exército afirma que os dez homens pertenciam a um grupo de 200 “terroristas” que atacaram as forças de segurança. Segundo a versão oficial, os soldados decidiram matar estes homens porque os intensos combates na região torvam impossível a sua transferência para a custódia policial. O exército afirmou que iria agir contra os envolvidos no massacre.
Mas os camponeses budistas entrevistados para este artigo não relataram qualquer ataque de um grande número de insurgentes contra as forças de segurança em Inn Din. E as testemunhas rohingya afirmaram à Reuters que os soldados arrancaram os dez de entre centenas de homens, mulheres e crianças que tinham procurado refugiar-se numa praia próxima da aldeia.
As várias entrevistas a camponeses budistas, soldados, agentes da polícia paramilitar, muçulmanos rohingya e membros da administração local revelaram ainda que:
— O exército e a polícia paramilitar deram instruções aos residentes budistas de Inn Din e de pelo menos duas outras aldeias para que incendiassem as casas dos rohingya, segundo mais de uma dúzia de camponeses budistas. Onze destes afirmaram que os budistas cometeram actos de violência, incluindo assassinatos. O governo e o exército têm repetidamente culpado os insurgentes rohingya de tais incêndios.
— A ordem para “limpar” os rohingya de Inn Din teve origem na cadeia de comando militar, segundo três agentes da polícia paramilitar que falaram na condição de anonimato, e um quarto agente policial de uma unidade de informações militares na capital do estado, Sittwe. Um dos agentes afirmou que, para não serem detectadas, as forças de segurança se vestiram à civil durante os ataques.
— Alguns membros da polícia paramilitar saquearam as propriedades rohingya, roubando até vacas e motociclos, para depois venderem o saque, segundo o governador da aldeia, Maung Thein Chay, e um dos agentes das forças de segurança.
— As operações em Inn Din foram lideradas pela 33.ª Divisão de Infantaria do exército, apoiada pelo 8.º Batalhão da Polícia de Segurança Paramilitar, de acordo com quatro agentes policiais, todos eles membros do batalhão.
Michael G. Karnavas, advogado americano estabelecido em Haia e com experiência em casos julgados no Tribunal Penal Internacional, afirma que indícios de que os militares ordenaram a civis que cometessem actos de violência contra a comunidade rohingya “seriam o mais próximo de uma prova inequívoca para estabelecer não só a intencionalidade, mas até a intencionalidade específica de genocídio, dado que os ataques parecem ter sido delineados para aniquilar os rohingya, ou pelo menos um número significativo deles.”
Provas de que as vítimas foram executadas sob a custódia do governo poderiam também ser usadas para um eventual processo de crimes contra a humanidade por parte das chefias militares, diz Karnavas, se pudesse ser provado de que tal fazia parte de uma campanha “generalizada ou sistemática” contra a população rohingya. Kevin Jon Heller, professor de Direito da Univesidade de Londres que trabalhou no processo de crimes de guerra do antigo líder sérvio Radovan Karadzic, afirma que uma ordem militar para “limpar” uma aldeia “é inequivocamente um crime contra a humanidade, nomeadamente o de transferência forçada de populações.”
Em Dezembro, os Estados Unidos impuseram sanções ao oficial do exército que esteve a cargo das tropas do Comando Ocidental em Rakhine, o general Maung Maung Soe. Até agora, no entanto, a Birmânia não enfrentou quaisquer sanções internacionais relativas à violência. A líder birmanesa, Aung San Suu Kyi, decepcionou muitos antigos apoiantes ocidentais ao não condenar as acções do exército. Era esperado que a eleição em 2015 do seu partido, a Liga Nacional pela Democracia, se traduzisse em reformas democráticas e numa abertura do país. Em vez disso, os críticos dizem que Suu Kyi é prisioneira dos generais que a libertaram da prisão domiciliária em 2010.
Questionado sobre as provas que a Reuters descobriu sobre o massacre, o porta-voz do governo, Zaw Htay, afirmou: “Não negamos as alegações sobre violações dos direitos humanos. E não estamos a negar todas as acusações. Se existirem indícios fortes e fidedignos de que ocorreram abusos, o governo investigará. E aí, se descobrimos que os indícios são verdadeiros e que essas violações efectivamente ocorreram, tomaremos as medidas necessárias de acordo com as nossas leis.”
Quando informado de que agentes da polícia paramilitar admitiram ter recebido ordens para “limpar” a comunidade rohingya de Inn Din, respondeu: “Teremos de verificar. Iremos questionar o Ministério do Interior e as forças policiais da Birmânia.” E quando questionado sobre as alegações de que os agentes saquearam a aldeia, mais uma vez respondeu que a polícia iria investigar.
Mostrou-se surpreendido quando lhe foi revelado que os próprios camponeses budistas tinham confessado que haviam incendiado as casas dos rohingya, e acrescentou: “Reconhecemos que há muitas alegações diferentes sobre o que se passou, mas teremos de investigar quem foram os responsáveis. E na situação actual isso é muito difícil.”
Zaw Htay defende a operação militar em Rakhine. “A comunidade internacional precisa de perceber quem foi responsável pelos primeiros ataques terroristas. Se este tipo de ataque terrorista ocorresse nos países europeus, nos Estados Unidos, em Londres, Nova Iorque, Washington, que diriam os meios de comunicação?”
Vizinhos contra vizinhos
Inn Din situa-se entre a cordilheira de Mayu e o Golfo de Bengala, a cerca de 50 km da capital do estado de Rakhine, Sittwe. A povoação é composta por pequenas comunidades dispersas ao redor de uma escola, uma clínica e um mosteiro budista. A comunidade budista está concentrada na parte norte da aldeia. Há muitos anos que existem tensões entre os budistas e os seus vizinhos muçulmanos, que representavam quase 90 % dos cerca de sete mil habitantes da aldeia. Mas as duas comunidades sempre conseguiram coexistir, pescando nas águas costeiras e cultivando arroz.
Em Outubro de 2016, rebeldes rohingya atacaram três postos de polícia no norte de Rakhine — foi o início de uma nova insurgência. Após os ataques, os rohingya de Inn Din dizem que muitos budistas deixaram de os contratar como ajudantes agrícolas e domésticos. Os budistas, por outro lado, afirmam que os rohingya simplesmente deixaram de trabalhar.
A 25 de Agosto do ano passado os rebeldes voltaram a atacar, atingindo 30 postos de polícia e uma base militar. O ataque mais próximo teve lugar a apenas 4 km a norte da aldeia. Em Inn Din, centenas de budistas refugiaram-se no mosteiro no centro da aldeia, segundo mais de uma dúzia de relatos. San Thein, de 36 anos e membro da patrulha nocturna budista, diz que os camponeses budistas temiam ser “engolidos” pelos seus vizinhos muçulmanos. Um ancião budista afirma que todos os rohingya, “incluindo as crianças”, eram parte da insurgência e, portanto, “terroristas”.
A 27 de Agosto, cerca de 80 soldados da 33.ª Divisão de Infantaria da Birmânia chegaram a Inn Din, segundo nove aldeões budistas. Dois agentes da polícia paramilitar e Soe Chay, o antigo soldado, afirmam que as tropas pertenciam ao 11.º regimento de infantaria da divisão. O oficial do exército que liderava as tropas disse aos camponeses que deviam cozinhar para os soldados e actuarem como vigias à noite, relata Soe Chay, tendo ainda prometido que as suas tropas protegeriam os budistas dos seus vizinhos rohingya. Cinco aldeões budistas afirmam que o oficial disse que poderiam voluntariar-se para fazerem parte das operações de segurança. Os voluntários mais jovens, contudo, precisariam da permissão dos pais para se juntarem às tropas.
O exército encontrou os voluntários que procurava no “grupo de segurança” budista de Inn Din, contam nove membros da organização e dois outros habitantes. Esta milícia informal foi criada em 2012, depois de violentos confrontos entre budistas e muçulmanos rohingya provocados por relatos de uma violação e assassinato de uma mulher budista por parte de três muçulmanos. Os meios de comunicação da Birmânia relataram na altura que os três homens foram condenados à morte por um tribunal estatal.
O “grupo de segurança” de Inn Din construiu postos de vigilância ao redor da parte budista da aldeia, e os seus membros revezaram-se para ficar de guarda. As suas fileiras incluíam bombeiros, professores, estudantes e jovens desempregados budistas. Foram úteis para os militares porque conheciam a geografia local, diz o governador budista de Inn Din, Maung Thein Chay.
A maioria dos 80 a 100 homens do grupo estava armada com machetes e paus. Segundo um dos membros, tinham também algumas armas de fogo, e alguns usavam vestuário militar a que chamavam “os fatos da milícia”.
Nos dias que se seguiram à chegada da 33.ª Divisão de Infantaria, soldados, polícias e aldeões budistas queimaram a maioria das casas dos muçulmanos rohingya de Inn Din, relatam uma dúzia de residentes budistas.
Dois dos agentes da polícia paramilitar, ambos membros do 8.º Batalhão de Polícia de Segurança, admitem que seu batalhão invadiu as comunidades rohingya acompanhado por soldados da recém-chegada 33.ª Divisão de Infantaria. Um dos agentes afirma que recebeu ordens verbais do seu comandante para “limpar” as áreas onde viviam rohingyas, o que entendeu como uma ordem para as incendiar.
O segundo agente descreveu a sua participação em várias incursões nas aldeias a norte de Inn Din. Os ataques envolveram pelo menos 20 soldados e entre cinco e sete polícias, disse. Um capitão ou um major lideravam os soldados, enquanto um capitão da polícia supervisionava a equipa policial. O objectivo desses ataques era impedir que os rohingya voltassem.
“Se tiverem um lugar para viver e comida para se alimentarem, podem realizar mais ataques”, afirmou. “É por isso que queimamos as suas casas, principalmente por razões de segurança.”
Segundo o segundo agente e Maung Thein Chay, os soldados e a polícia paramilitar usavam vestuário civil para se misturarem com os moradores. Se os media descobrissem o envolvimento das forças de segurança, “teríamos problemas muito grandes”, relata o agente da polícia.
Um porta-voz da polícia, o coronel Myo Thu Soe, afirmou não ter indícios de que as forças de segurança incendiaram aldeias ou vestiram roupas civis. E que nunca houve uma ordem para “limpar” ou “incendiar” as aldeias. “Isso é impossível”, disse à Reuters. “Se isso acontecesse, teria de ser denunciado e investigado oficialmente.”
“Dado que me estão a dar essas informações neste momento, iremos voltar a investigar o que se passou”, acrescentou. “O que posso dizer por agora é que, no que toca às forças de segurança, há ordens, instruções e constante supervisão, que têm de ser seguidas. Por isso, não creio que que essas coisas possam ter acontecido.”
O exército não respondeu a um pedido de comentário.
Um auxiliar da clínica de Inn Din, Aung Myat Tun, de 20 anos, confessa ter participado em vários ataques. “As casas dos muçulmanos eram fáceis de queimar por causa dos telhados de palha. Basta pegar fogo à ponta do telhado”, diz. “Os anciãos da aldeia puseram as vestes dos monges na ponta das varas para fazer as tochas, e mergulharam-nas em querosene. Não podíamos levar telemóveis. A polícia disse que nos matavam se vissem qualquer um de nós a tirar fotografias.”
O vigilante nocturno San Thein, um dos principais membros do “grupo de segurança” da aldeia, afirma que primeiro as tropas varreram as comunidades muçulmanas. E que depois os militares enviaram os camponeses budistas para incendiarem as casas.
“Arranjamos o querosene no mercado da aldeia, depois de os kalars terem fugido”, conta, usando um insulto birmanês para pessoas do sul da Ásia.
Um jovem budista disse que achou ter ouvido o som de uma criança dentro de uma casa rohingya que foi queimada, e um segundo aldeão confessou ter ajudado a incendiar uma casa com gente lá dentro.
Soe Chay, o antigo soldado que depois cavou o túmulo dos dez homens rohingya, disse que participou num assassínio. Contou à Reuters que as tropas descobriram três homens e uma mulher escondidos junto a um palheiro em Inn Din, a 28 de Agosto. Um dos homens tinha um smartphone que poderia ser usado para tirar fotos incriminatórias.
Os soldados disseram a Soe Chay que “lhes fizesse o que quisesse”. Apontaram para o homem com o telefone e ordenaram-lhe que se levantasse. “Comecei a cortá-lo com uma espada, e um soldado deu-lhe um tiro quando ele caiu.”
Segundo dezenas de relatos de residentes budistas e rohingya, este tipo de violência aconteceu por todo o norte do estado de Rakhine.
Dados do Operational Satellite Applications Program das Nações Unidas mostram dezenas de aldeias rohingya incendiadas no estado de Rakhine, numa área que se estende por 110 km. A Human Rights Watch, com sede em Nova Iorque, afirma que mais de 350 aldeias foram incendiadas nos três meses que se seguiram a 25 de Agosto, de acordo com uma análise das imagens de satélite.
Na aldeia de Laungdon, cerca de 65 km a norte de Inn Din, Thar Nge, de 38 anos, disse que a polícia e as autoridades locais pediram que se juntasse a um “grupo de segurança” budista. “O exército convidou-nos para queimarmos a aldeia kalar em Hpaw Ti Kaung”, revelou, acrescentando que quatro aldeões e quase 20 soldados e polícias estiveram envolvidos na operação. “A polícia começou a disparar dentro da aldeia para que todos os residentes fugissem e depois nós incendiarmos tudo. A aldeia foi queimada porque a polícia acreditava que os habitantes apoiavam os insurgentes rohingya – foi por isso que eles a “limparam”.
Um estudante budista da aldeia Ta Man Tha, 15 km a norte de Laungdon, revelou também ter participado nos incêndios de casas rohingya. Um oficial do exército procurou 30 voluntários para queimar aldeias kalar, disse o estudante. Quase 50 pessoas voluntariaram-se, tendo recolhido combustível de motos e de um mercado.
“Separaram-nos em vários grupos. Não fomos autorizados a entrar directamente na aldeia. Tivemos de a cercar e aproximarmo-nos como eles mandaram. Primeiro o exército começou a disparar e só depois nos deixaram entrar.”
Depois de os rohingya terem fugido de Inn Din, os camponeses budistas saquearam-lhes as propriedades, incluindo cabras e galinhas, segundo relatos dos próprios. Mas os bens mais valiosos, como motas e gado, foram recolhidos por membros do 8.º Batalhão da Polícia de Segurança e posteriormente vendidos, afirma o primeiro agente da polícia e o governador Maung Thein Chay. De acordo com este último, o comandante do 8.º Batalhão, Thant Zin Oo, fez um acordo com comerciantes de outras partes do estado de Rakhine para lhes vender gado. O agente da polícia contou que roubou quatro vacas aos rohingya, mas que Thant Zin Oo lhas confiscou.
Contactado por telefone, Thant Zin Oo não quis comentar. O coronel Myo Thu Soe, porta-voz da polícia, afirmou que as alegações de saque iriam ser investigadas.
A 1 de Setembro, centenas de rohingya de Inn Din estavam refugiados num campo improvisado numa praia próxima. Ergueram abrigos de lona para se protegerem da chuva intensa.
Neste grupo estavam os dez homens rohingya que viriam a ser mortos na manhã seguinte. A Reuters conseguiu identificá-los a todos através de testemunhas na comunidade budista de Inn Din e de parentes e testemunhas rohingya localizados nos campos de refugiados no Bangladesh.
Cinco dos homens, Dil Mohammed, 35 anos, Nur Mohammed, 29 anos, Shoket Ullah, 35 anos, Habizu, 40 anos e Shaker Ahmed, 45 anos, eram pescadores ou vendedores de peixe. O mais rico do grupo, Abul Hashim, 25 anos, tinha uma loja que vendia redes e peças de máquinas a pescadores e agricultores. Abdul Majid, 45 anos e pai de oito filhos, tinha uma pequena loja onde vendia nozes de areca envoltas em folhas de bétele, geralmente mastigadas como tabaco. Abulu, 17 anos, e Rashid Ahmed, 18 anos, eram estudantes do ensino secundário. Abdul Malik, 30 anos, era professor.
De acordo com o comunicado divulgado pelo exército a 10 de Janeiro, as forças de segurança chegaram a uma área costeira onde “foram atacadas por cerca de 200 bengalis armados com paus e espadas”. A declaração afirma que “à medida que as forças de segurança dispararam para o ar, os bengalis dispersaram e fugiram. Dez foram presos.”
Três testemunhas budistas e mais de uma dúzia de testemunhas rohingya contradizem esta versão. Os seus relatos diferem uns dos outros em alguns detalhes. Os budistas falam de um confronto entre um pequeno grupo de homens rohingya e alguns soldados perto da praia. Mas há unanimidade num ponto crucial: nenhum relato afirma que os militares foram atacados em grande escala em Inn Din.
O porta-voz do governo, Zaw Htay, remeteu a Reuters para a declaração do exército de 10 de Janeiro e declinou fazer mais comentários. O exército também não respondeu a um pedido de comentário.
As testemunhas rohingya, que estavam na praia ou perto dela, afirmam que o professor Abdul Malik voltou a casa, acompanhado pelos filhos, para ir buscar comida e bambu para o abrigo. Quando voltou, era seguido por um grupo de pelo menos sete soldados e aldeões budistas armados. Com sangue a pingar da cabeça, Abdul Malik cambaleou de volta ao grupo. Algumas testemunhas dizem que viram um dos homens armados a atingir a cabeça de Abdul Malik com uma faca.
Depois, os militares acenaram com as armas para a multidão de cerca de trezentos rohingya, ordenando-lhes que se juntassem nos arrozais, dizem as mesmas testemunhas. Os soldados e os rohingya, provenientes de diferentes partes ada Birmânia, falavam diferentes línguas, tendo sido necessária a tradução de aldeões mais conhecedores.
“Não consegui ouvir muito bem, mas eles apontaram para o meu marido e para outros homens e ordenaram-lhes que se levantassem e avançassem”, conta Rehana Khatum, esposa de Nur Mohammed, um dos dez que viria a ser assassinado. “Ouvimos que queriam ter uma reunião com os homens. E mandaram-nos voltar para a praia.”
Os soldados detiveram e interrogaram os dez homens num edifício da escola de Inn Din durante uma noite, relatam os militares. Rashid Ahmed e Abulu tinham estudado lá, ao lado de estudantes budistas, até aos ataques dos rebeldes rohingya em Outubro de 2016. As escolas foram fechadas temporariamente, interrompendo o último ano dos dois.
“Lembro-me dele lá sentado a estudar, o que sempre me surpreendeu porque eu não tenho educação”, conta o pai de Rashid Ahmed, Abdu Shakur, agricultor de 50 anos. “Ficava a olhar para ele a ler. Iria ser o primeiro da família a ter educação.”
Uma fotografia, tirada na noite em que os homens foram detidos, mostra os dois estudantes rohingya e os oito homens mais velhos ajoelhados num caminho ao lado da clínica da aldeia, a maioria em tronco nu. Tiraram-lhes a roupa quando os detiveram, relatam uma dúzia de testemunhas rohingya, mas não se sabe porquê. Naquela noite, segundo os aldeões budistas, os homens “tiveram direito” a uma última refeição carne de vaca, e receberam roupas novas.
A 2 de setembro, os homens foram levados para um mato a norte da aldeia, perto de um cemitério budista, relataram seis aldeões budistas. O local é escondido por uma colina com árvores. Lá, de joelhos, os dez foram novamente fotografados e interrogados pelas forças de segurança sobre o desaparecimento de um agricultor budista local chamado Maung Ni, de acordo com um ancião de Rakhine que disse ter testemunhado o interrogatório.
A Reuters não conseguiu decifrar o que aconteceu com Maung Ni. De acordo com vizinhos budistas, o agricultor desapareceu depois de sair de casa na manhã de 25 de Agosto para tratar do seu gado. Vários camponeses budistas e rohingya disseram à Reuters que acreditam que tenha sido assassinado, mas ninguém disse ter algum indício que ligasse algum dos dez homens ao seu desaparecimento. No comunicado de 10 de Janeiro, o exército afirma que “terroristas bengalis” mataram Maung Ni, mas não identifica os criminosos.
Dois dos homens que aparecem atrás dos prisioneiros rohingya na fotografia tirada na manhã de 2 de Setembro pertencem ao 8.º Batalhão da Polícia de Segurança. A Reuters confirmou a identidade dos dois homens pelas suas páginas de Facebook, e visitou-os pessoalmente.
Um dos dois oficiais, Aung Min, um recruta de Yangon, está directamente atrás dos prisioneiros. Olha para a câmara enquanto segura uma arma. O outro oficial, o capitão da polícia Moe Yan Naing, é a figura no canto superior direito, com a espingarda sobre o ombro.
No dia seguinte à prisão dos dois repórteres da Reuters, o governo da Birmânia anunciou que Moe Yan Naing fora detido e que estava a ser investigado ao abrigo da Lei dos Segredos Oficiais de 1923.
Aung Min, que não enfrenta qualquer acusação, declinou falar com a Reuters.
Três jovens budistas relataram que, de uma cabana, viram os dez prisioneiros rohingya a serem levados pelos soldados por uma colina, em direcção ao local onde viriam a morrer.
Um dos coveiros, o antigo soldado Soe Chay, disse que os filhos de Maung Ni foram convidados pelo oficial do exército responsável pelo esquadrão a darem os primeiros golpes.
Segundo Soe Chay, o primeiro filho decapitou o professor, Abdul Malik, e o segundo filho deu uma machadada no pescoço de um dos outros homens.
“Depois de os irmãos os cortarem com espadas, o esquadrão disparou as armas. Dois a três tiros em cada um”, afirma Soe Chay. Um segundo coveiro, que recusou ser identificado, confirmou que os soldados dispararam contra alguns dos homens.
Na declaração de 10 de Janeiro, os militares afirmam que os dois irmãos e um terceiro aldeão “cortaram os terroristas bengalis” com espadas e que depois, no meio do caos que se seguiu, quatro membros das forças de segurança dispararam contra os prisioneiros. “Serão tomadas medidas contra os aldeões que participaram no incidente e contra os membros das forças de segurança que quebraram as Regras de Empenhamento nos termos da lei”, revela o comunicado. Contudo, não especifica quais são essas regras.
Tun Aye, um dos filhos de Maung Ni, foi detido e acusado de homicídio, disse o seu advogado a 13 de Janeiro. Contactado pela Reuters a 8 de Fevereiro, o advogado não quis fazer mais comentários. A Reuters não conseguiu contactar o segundo irmão.
Em Outubro, moradores de Inn Din levaram os dois repórteres da Reuters a um matagal atrás da colina onde disseram que os assassínios ocorreram. Os jornalistas descobriram um trilho recente que desemboca num pedaço de terra macia e recentemente revolvida, e repleta de ossos. Alguns dos ossos estavam enredados em pedaços de roupa e de cordas que pareciam combinar com as cordas que se vêem nos pulsos dos prisioneiros nas fotografias. Toda a área cheirava a morte.
A Reuters mostrou fotografias do local a três especialistas forenses: Homer Venters, director de programas da Physicians for Human Rights; Derrick Pounder, patologista que já trabalhou com a Amnistia Internacional e as Nações Unidas; e Luis Fondebrider, presidente do Colectivo Argentino de Antropologia Forense, que investigou as sepulturas das vítimas da junta militar da Argentina nos anos 1970 e 80. Todos os ossos são de restos humanos, incluindo a parte torácica de uma coluna vertebral, costelas, omoplata, fémur e tíbia. Pounder disse não poder descartar também a presença de ossos de animais.
O ancião budista forneceu aos jornalistas da Reuters uma fotografia que mostra o momento posterior à execução. Nela, os dez homens rohingya estão com a mesma roupa da fotografia anterior e estão amarrados uns aos outros com a mesma corda amarela, empilhados num pequeno buraco na terra, o sangue numa poça à sua volta. Abdul Malik, o professor, parece ter sido decapitado. Abulu, o aluno, tem uma enorme ferida no pescoço. As duas lesões parecem consistentes com o relato de Soe Chay.
O patologista forense Fondebrider analisou esta fotografia. Segundo ele, os ferimentos visíveis em dois dos corpos são consistentes com “a acção de um machete ou algo afiado que foi usado na garganta.”
Alguns membros das famílias não tinham a certeza de que os homens tinham sido mortos até a Reuters ter voltado aos seus campos no Bangladesh em Janeiro.
“Não consigo explicar o que sinto por dentro. O meu marido está morto”, diz Rehana Khatun, mulher de Nur Mohammed. “O meu marido foi-se para sempre. Não quero mais nada, mas quero justiça pela sua morte.”
Em Inn Din, o ancião budista explicou por que decidiu partilhar com a Reuters as provas dos assassinatos. Quero ser transparente neste caso. Não quero que nada assim volte a acontecer.”
Tradução de António Domingos