Porquê agora? Uma anatomia da queda de Harvey Weinstein
O desmoronamento do porta-estandarte do cinema independente está irreversivelmente em curso, após a torrente de denúncias dos abusos sexuais que terá cometido nas últimas décadas. Depois de casos como o de Bill Cosby (ou mesmo de Donald Trump), há um novo contexto, ou apenas um novo Weinstein?
O legado de Harvey Weinstein – porque é já disso que se trata, da discussão do que fica após o quase fatal desmoronamento de uma figura de proa – era para ser Pulp Fiction. Mas o legado de Harvey Weinstein vai ser (também) uma história de violência sexual, sistémica e de género. Durante décadas foi o porta-estandarte do cinema independente americano e também, denunciam agora dezenas de mulheres, de abusos mantidos em segredo. Agora, porque o momento é outro. Há um Presidente que acha que pode "grab them by the pussy", há os casos Bill Cosby ou Fox News, há um contexto.
É um daqueles fait-divers da indústria: já se agradeceu mais a Harvey Weinstein do que a Deus nas cerimónias de prémios de Hollywood (mas Steven Spielberg ainda é o campeão dos obrigados). Mas esta quinta-feira, após uma semana em que as denúncias dos abusos cometidos pelo produtor e distribuidor se sucederam em cascata, a própria Academia que entrega os Óscares classificou o seu alegado comportamento como "repugnante". O número de mulheres, entre actrizes, modelos, aspirantes a actrizes e funcionárias, que acusam publicamente Weinstein continua a crescer, a polícia de Londres anunciou a abertura de um inquérito após uma queixa formal apresentada num condado do Noroeste de Inglaterra, e em Nova Iorque as autoridades policiais estão a inventariar a existência de eventuais novas denúncias. O processo de chegada a público segue um padrão conhecido: poucas queixas formais, acordos extrajudiciais confidenciais, medo do poder, da influência do alegado agressor sobre os média e a indústria.
Está a ser assim com Harvey Weinstein. E foi assim com o comediante Bill Cosby, com o ex-presidente da Fox News Roger Ailes e com o comentador conservador do mesmo canal Bill O’Reilly – os dois últimos afastados dos seus cargos, o primeiro à espera de voltar a tribunal após um julgamento anulado. Mas no escândalo Weinstein, detentor de seis Óscares de Melhor Filme por produções da sua influente Miramax dos anos 1990 e da mais recente Weinstein Company, tudo está a ser mais rápido. A investigação do New York Times foi publicada no dia 5 e a da revista New Yorker a 10. Rapidamente se sucederam manifestações públicas de apoio como a da actriz Brie Larson, que rematou um tweet com um simbólico “acredito em vocês”, e também outros relatos sobre a cultura de assédio na indústria. O mais recente é o da francesa Léa Seydoux.
Ashley Judd é a primeira voz no artigo do New York Times. Em 2015, já tinha contado à Variety a sua história – há 20 anos, terá sido chamada ao quarto de hotel do produtor do filme em que trabalhava; ele ter-lhe-á proposto massagens, ou que o visse a tomar banho. Só agora disse o nome do produtor. “As mulheres têm falado entre si sobre Harvey há muito tempo e simplesmente já é mais do que altura de ter essa conversa publicamente”, disse ao jornal norte-americano.
Pela primeira vez, nomes como o de Judd, mas também do nível de estrelato de Gwyneth Paltrow e Angelina Jolie, Asia Argento, Mira Sorvino, Rose McGowan ou Rosanna Arquette, falaram de assédio na primeira pessoa. São acompanhadas por figuras menos conhecidas, como as actrizes Katherine Kendall, Emma de Caunes, Judith Godrèche ou Jessica Barth. Argento disse à New Yorker ter sido violada pelo produtor quando tinha 22 anos. McGowan não detalha a sua história devido a acordos judiciais, mas garante que actores como Ben Affleck, por exemplo, sabiam do comportamento genérico de Weinstein. Paltrow e Jolie relatam situações tensas de assédio sexual pelo produtor no início das suas carreiras, e detalham como avisaram outras mulheres ou como Brad Pitt confrontou Weinstein. A modelo Ambra Battilana Gutierrez levou o seu caso à polícia mas o procurador de Nova Iorque não deduziu acusação; a jornalista Lauren Sivan diz ter sido encurralada num corredor num restaurante, onde o produtor se masturbou para um vaso em 2007. Todas temiam a personalidade agressiva de Weinstein, mas sobretudo o seu poder.
Depois de pelo menos meia década de pressão pública por parte das mulheres em Hollywood, que exigem igualdade de salários, de oportunidades – no fundo, mais poder e mais agência – e papéis menos tipificados, desenhou-se uma atmosfera em que estes temas parecem ter outro enquadramento. Um clima que pode ser menos hostil à versão das alegadas vítimas no âmbito de uma “cultura crescente de responsabilização, corporizada nas revelações relativamente recentes sobre homens célebres”, como escreve Ronan Farrow, o jornalista que assina o artigo da New Yorker. E que nomeia “Bill O’Reilly, Roger Ailes, Bill Cosby e Donald Trump”. Essas figuras foram “rapidamente condenadas” pela “indústria de inclinações liberais” de que faz parte Weinstein, lembrou a actriz e realizadora Lena Dunham num artigo de opinião no New York Times. Dunham, por isso, pediu que "falem mais alto".
O contexto, mas visto de outro prisma, não escapava ao próprio Weinstein. Emily Nestor, ex-funcionária da Weinstein Company, descreveu à New Yorker como o seu chefe lhe terá dito em 2014, quando a assediava, que “nunca teve de fazer nada como o Bill Cosby”, acusado de drogar mulheres para depois as agredir sexualmente. Anos mais tarde, no final da campanha presidencial de 2016, o Washington Post revelou uma gravação em que Trump se gabava: “Quando se é uma estrela, elas deixam-nos fazê-lo. Podemos fazer tudo… ‘Grab ’em by the pussy’ [agarrá-las pela rata]. Podemos fazer tudo." Nas várias Marchas das Mulheres logo após a eleição de Trump, os pussy hats rosa pintaram as ruas em reacção à boçal expressão do Presidente – e o próprio Weinstein se juntou a uma dessas manifestações, durante o Festival de Sundance. Agora, há também uma gravação em que diz a Ambra Gutierrez, depois de a ter apalpado contra a sua vontade: “Estou habituado a isso. Vá lá. Por favor.”
O próprio Donald Trump já reagiu ao caso Weinstein: “Não estou nada surpreendido." Questionado sobre a ligação entre a infame gravação que protagoniza e o escândalo Weinstein, repetiu a justificação de 2016 para o teor das suas declarações – é conversa de "balneário”. Os humoristas da TV americana não aceitaram a explicação do “Harvey Weinstein dos presidentes”, como lhe chamou John Oliver. "Isso é como Harvey Weinstein dizer: ‘Masturbei-me para vasos de plantas? Isso é só conversa de estufa'”, ripostou Stephen Colbert.
Também o ex-presidente Barack Obama (cuja filha Malia foi estagiária de Weinstein) e a ex-candidata Hillary Clinton reagiram ao caso – sem, contudo, mencionarem os volumosos donativos do produtor para as suas campanhas e para o Partido Democrata. “Fiquei chocada e indignada”, disse Clinton, que reforçou a importância da “coragem e do apoio de terceiros” para “parar este tipo de comportamento”. O casal Obama, “enojado”, fez eco das mesmas palavras, frisando que “todos temos de construir uma cultura – inclusive empoderando as nossas raparigas e ensinando decência e respeito aos nossos rapazes – que no futuro possa tornar tal comportamento menos prevalente”.
Entretanto, o volume da reacção de Hollywood sobe de dia para dia. Bob Iger, presidente da Disney, ou o ex-CEO da DreamWorks Jeffrey Katzenberg condenaram Weinstein publicamente. Veio a público o email em que Weinstein pedia apoio da indústria para não ser despedido da própria empresa, sem sucesso. A elite de Hollywood saiu em defesa das mulheres que agora falam – pelas vozes de Meryl Streep, Judi Dench, Jennifer Lawrence, todas oscarizadas em filmes Weinstein, Charlize Theron, Julianne Moore, Nicole Kidman, George Clooney ou Leonardo DiCaprio, membros da chamada Lista A da indústria.
Realizadores como Kevin Smith, Ryan Murphy ou Judd Apatow repudiaram-no. Matt Damon e Ben Affleck, lançados com O Bom Rebelde distribuído pela Miramax, apoiaram as mulheres visadas mas estão a ser questionados sobre o conhecimento que teriam do comportamento do produtor. Outros continuam silenciosos, como Quentin Tarantino, Robert Rodriguez ou Gus Van Sant. Weinstein foi suspenso da Academia de Cinema e Televisão Britânica, desapareceu das fichas técnicas das séries de TV produzidas pela Weinstein Company e vários dos seus projectos com a Apple ou a Amazon foram cancelados ou estão em vias de o ser. A sua mulher, a designer de moda Georgina Chapman, pediu o divórcio.
Nos últimos meses, como detalha Farrow, o próprio produtor e seus representantes tentaram condicionar as investigações dos jornalistas, contactando as mulheres, antigos e actuais funcionários, ameaçando-o. Depois de ter admitido ter feito coisas erradas, Weinstein anunciou que vai processar o New York Times. Na terça-feira, a porta-voz do produtor de 65 anos reiterou que “todas as alegações de sexo não consensual são inequivocamente negadas”, rejeitando também que tenha havido “actos de retaliação”.
Vários outros relatos de assédio sexual foram denunciados por actrizes ao longo dos anos. Megan Fox disse ter sido enganada por “lendas de Hollywood” que pensava que queriam conhecê-la para trabalhar; há um ano, Thandie Newton contou que um realizador a filmou de forma imprópria quando era adolescente. Há 15 anos Arnold Schwarzenegger admitiu ter apalpado e assediado mulheres em filmagens. E há também os casos, todos de diferentes contornos, de Roman Polanski, ou as alegações sobre Woody Allen ou sobre Casey Affleck que não têm gerado uma reacção pública tão sonante nem tão unânime na comunidade do cinema.
E, embora algo tenha mudado no contexto, outro factor paira sobre o caso. Como escreveu Rebecca Traister no The Cut, aquilo de que muitos sabiam durante pelo menos 20 anos só surge publicamente numa altura em que Weinstein “perdeu poder na indústria, já não é o titã do cinema independente, o magnata indie que pode ditar as hipóteses de Óscar de um actor”.