Harvey Weinstein, ou o lado negro da lua
O produtor que reconfigurou o mainstream de Hollywood à imagem do seu gosto, marcando um antes e um depois, é hoje persona non grata. Mas mais do que indiciar um predador sexual, o caso Harvey Weinstein veio denunciar uma indústria que nunca foi tão liberal como se pinta.
Que fique bem claro: por mais repugnante e imoral que seja a ideia de que Harvey Weinstein passou as últimas décadas a assediar e violar actrizes, assistentes, secretárias, isto não é nada de novo em Hollywood – desde os anos 1920 e a célebre acusação de violação e assassinato que acabou com a carreira do actor Roscoe “Fatty” Arbuckle, passando pelas lendas sobre os sofás dos directores de casting, nos quais, ao longo dos anos, inúmeras actrizes terão sido forçadas a deitar-se para obter um papel de peso. E o silêncio encavacado que começou por receber a reportagem publicada no New York Times, com pouca gente disposta a fazer depoimentos em on (pelo menos até as comportas se abrirem), é a mais forte indicação de que as coisas não irão mudar tanto como se deseja. Não porque não devam mudar (devem); não porque não tenham de mudar (têm); não porque este comportamento não seja inaceitável no século XXI (é). Mas porque o caso Weinstein não é caso isolado nem caso pontual.
Claro que há a eterna questão que persegue estes casos desde os tempos de Leni Riefenstahl ou Ezra Pound: como reconciliar talento e moralidade? Weinstein não era exactamente um autor, um cineasta, um argumentista – apenas (primeiro) um distribuidor e mestre do marketing, só depois um produtor. A sua arte esteve sempre em ter “faro” para descobrir talentos e para os vender. Sim, foi ele quem lançou Steven Soderbergh com Sexo, Mentiras e Video; sim, foi ele quem “fez” Quentin Tarantino, distribuindo Cães Danados nos EUA e produzindo todos os seus filmes posteriores (quer na Miramax, quer na Weinstein Company), que arriscou estrear o Kids de Larry Clark ou os documentários de Michael Moore, que apostou em Robert Rodriguez, Matt Damon e Ben Affleck.
Mas nunca esqueçamos que foi também Harvey Weinstein que nos deu A Vida É Bela, O Paciente Inglês, A Paixão de Shakespeare, Chocolate, Chicago, e que, nesse processo, reduziu o conceito de “filme de prestígio” e “filme de qualidade” a uma fórmula anónima e vistosa apontada aos Óscares. Ao mesmo tempo, a sua ambição desmedida inflacionava de tal modo os preços dos “pequenos” filmes que apareciam em Sundance (muitos dos quais nunca recuperariam o investimento dos distribuidores) que o mercado independente entrou numa “bolha” da qual ainda não se recompôs.
Estará talvez na altura de começar a definir uma Hollywood “pré-Weinstein” e uma Hollywood “pós-Weinstein”, tal foi o peso que a Miramax ganhou nos anos 1990 – ao “monetizar” o cinema que se fazia de modo independente e ao impor toda uma nova lógica de produção, substituindo-se ao mainstream de médio-baixo orçamento proveniente dos estúdios.
Mesmo que involuntariamente, o resultado das políticas de Weinstein foi uma “terra queimada” que desvalorizou por completo o termo indie (sinal disso foi a criação do epíteto “indiewood” para estas produções aparentemente indie mas profundamente mainstream) e contribuiu para o fechar das portas dos grandes estúdios aos filmes do “meio da tabela”, que agora só existem enquanto “isco para Óscares” ou como produções externas. Prova disso é que com o lançamento da Weinstein Company, em 2005, teve dificuldades em recriar os bons tempos da Miramax. O Discurso do Rei, em 2011, terá sido o “último hurra” de Harvey como mestre do marketing.
O timing das revelações não é, por isso, fortuito – e não são poucos os que o notam –, tem qualquer coisa de “mais um prego para o caixão”. O comportamento de Weinstein era um segredo de polichinelo em Hollywood havia anos. Vários jornalistas contam que estiveram à beira de publicar textos sobre o assunto para, em cima do momento, advogados ameaçarem com processos judiciais ou testemunhas-chave se retractarem e retirarem os seus depoimentos. Só agora, com o poder do produtor na indústria significativamente reduzido, os riscos de o contrariar baixaram ao ponto de as investigações ganharem tracção. Afinal, o bom predador sabe aproveitar o momento de fraqueza da sua presa – e Weinstein passou de predador a presa.
A pergunta, no entanto, continua sem resposta. Como é que um defensor das causas liberais, que não hesitou em ir contra os desejos dos seus patrões da Disney ao distribuir Larry Clark ou Michael Moore, que lançou as carreiras de Affleck, Damon, Gwyneth Paltrow, Roberto Benigni, era ao mesmo tempo um predador sexual? O bullying é um traço de personalidade de Weinstein, aliás, pública e repetidamente assumido. Mesmo Matt Damon, citado por Peter Biskind na sua história da cena independente pós-Sundance Down and Dirty Pictures, dizia que Harvey era o escorpião que pede ajuda ao sapo para atravessar o rio para o matar uma vez lá chegado.
Nunca foram segredo nenhum o seu mau feitio e a sua capacidade de comprar guerras – conhecido como “Harvey Mãos-de-tesoura”, o produtor não hesitava em alterar a montagem de um filme para o tornar mais vendável mesmo contra o desejo dos realizadores, ou mesmo em “despejar” um filme nas salas sem o promover, se não estivesse contente com o resultado. Enquanto Harvey estava no “topo do mundo”, ninguém lhe queria fazer frente, sabendo que era a sua carreira que podia estar na balança.
Mas há uma outra questão: a América sempre teve os seus segredinhos sujos e nunca correspondeu exactamente à imagem que ainda hoje continua a projectar. Hollywood não é diferente do resto do país, apenas mostra uma outra fachada, mais liberal, mas, de resto, é uma indústria maioritariamente composta pelos mesmos homens brancos de meia-idade, numa altura em que a audiência que consome os seus filmes é cada vez mais diversa em termos de orientação sexual, género e cor da pele. Harvey Weinstein faz parte desse sistema e não é exemplo de nada: é um sintoma de uma situação que continuará a existir enquanto não houver uma total mudança de mentalidades. E a culpa, aqui, não é apenas do sistema, e da sua tendência para favorecer os que estão no poder – porque Angelina Jolie ou Gwyneth Paltrow, cujas palavras são respeitadas por milhões de pessoas, podiam perfeitamente ter vindo a lume mais cedo para contar as suas histórias, mas só agora que à reportagem original do Times se veio juntar a de Ronan Farrow na New Yorker vieram revelar as suas experiências. E para quem achava que eram só os republicanos e o seu eleitorado branco, idoso, conservador e temente a Deus a ter este tipo de comportamento e que o liberalismo da esquerda consciente e artística não era capaz disto – tcharã!
É triste? É. Mas é também inevitável. E significativo. E voltamos ao ponto zero. Não é que seja impossível conciliar o comportamento inaceitável com o bom gosto artístico. Apenas não é possível separá-los. A questão não é que Weinstein tenha tido o mérito de revelar Quentin Tarantino, apesar de ser um predador sexual – é que o teve sendo um predador sexual. Ele nunca foi apenas uma coisa ou outra. Foi sempre tudo ao mesmo tempo. Só não quisemos olhar para esse lado negro. E, enquanto quisermos continuar a não olhar, continuará a haver Harvey Weinsteins.