Roger Ailes, o homem que morreu dez meses antes de morrer
Obituário (1940-2017) Ajudou Nixon e Bush a chegarem à Casa Branca, moldou a forma como se tem feito jornalismo nas últimas décadas e acabou no fundo de um poço, quando se descobriu que passou a vida a abusar sexualmente de apresentadoras e jornalistas.
Se um autor de ficção quisesse encaixar uma morte no fim da vida de Roger Ailes tão bem como duas peças de Tetris se encaixam uma na outra, provavelmente adivinharia aquilo que aconteceu na realidade. Na quinta-feira passada, ao fim de décadas a influenciar a forma como os Estados Unidos se olham ao espelho na televisão e de ter passado o último ano de vida a tentar esconder-se de acusações de assédio sexual, o homem que deu à América um megafone conservador chamado Fox News morreu de complicações provocadas por uma queda – escorregou quando andava pela sua mansão em Palm Beach, bateu com a cabeça no chão e perdeu a luta contra um hematoma.
Foi um fim abrupto para uma vida que parecia estar sempre a subir, mas que desceu tanto na recta final que a memória colectiva foi muito dura com ele na hora da morte. Houve elogios, sim, mas também houve muitas críticas contundentes e, acima de tudo, silêncios. Aqueles silêncios que, se falassem, seriam ainda mais duros do que as críticas contundentes.
"Roger Ailes foi um dos piores americanos de sempre", escreveu na revista Rolling Stone o jornalista e escritor Matt Taibbi, antes de chamar ao fundador da Fox News um "Cristóvão Colombo do ódio" e o acusar de ser, ao mesmo tempo, o pai, a mãe, o avô e a avó da forma como muitas pessoas consomem notícias hoje em dia.
"O que a maioria de nós compra quando vê este ou aquele canal, ou quando lê este ou aquele jornal, é um olhar reconfortante sobre as mudanças que mais nos assustam no mundo. Compramos a versão do mundo que nos agrada e vivemos em pequenas bolhas, onde podemos fazer crescer os nossos ressentimentos e nunca ninguém nos diz que estamos errados. Foi o Ailes quem inventou essas bolhas."
Roger Ailes tinha 56 anos quando o magnata dos media Rupert Murdoch o pôs no topo da então recém-nascida Fox News, em Outubro de 1996. Era o homem ideal para a tarefa: furar o monopólio noticioso da CNN e fazer frente à ofensiva liberal lançada pela MSNBC poucos meses antes, tudo com um jornalismo que se tornou imediatamente sinónimo de Partido Republicano.
Nixon ganhou, Ailes também
Nascido em 1940 numa pequena cidade do estado do Ohio, mesmo no coração da gigantesca cintura industrial americana que é hoje um cemitério de ferrugem, Roger Ailes saiu da universidade com uma especialização em rádio e televisão. Ao mesmo tempo, dava os primeiros passos na profissão que faria dele uma das figuras mais polémicas dos Estados Unidos, como produtor no programa The Mike Douglas Show.
Foi nos bastidores desse talk show, em 1967, que conheceu Richard Nixon, um candidato à Presidência que estava no auge da sua segunda vida após a derrota histórica chamada John Kennedy e antes da morte política chamada Watergate. Nixon ficou encantado com o jovem Ailes e convidou-o para trabalhar na campanha contra o representante do Partido Democrata, Hubert Humphrey. Nixon ganhou e Ailes também – a partir daí, o seu nome ficaria para sempre associado ao sucesso de candidatos do Partido Republicano, de Ronald Reagan a George Bush.
A sua influência como especialista em comunicação nos 20 anos seguintes, entre 1968 e 1988, foi tal que o (agora) respeitado George Bush furou o silêncio com que muitos amigos receberam a morte de Roger Ailes e fez-lhe o maior elogio que um político pode fazer: "Ele não era perfeito, mas era meu amigo e eu gostava muito dele. Não tenho a certeza de que tivesse sido Presidente sem o seu grande talento e a sua ajuda sempre leal. Descansa em paz."
É compreensível que George Bush lembre Roger Ailes na hora da morte. Ainda antes de ter deixado uma marca na forma como se começou a fazer jornalismo televisivo nos Estados Unidos com a Fox News, a influência de Ailes na política do país foi carimbada com um anúncio negativo que ainda hoje é visto como importante para a vitória de Bush em 1988 – a poucas semanas das eleições, os eleitores começaram a ver imagens de prisioneiros a entrar e a sair de uma prisão por uma porta giratória, e o candidato do Partido Democrata, Michael Dukakis, ficou gravado em muitas cabeças como o homem que iria deixar a América à mercê do tráfico de drogas e dos homicídios.
Mas se Roger Ailes conseguiu esculpir a sua imagem no Mount Rushmore da política americana, foi tudo graças ao gigantesco cinzel que é a Fox News. Nas duas décadas entre 1996 e 2016, Ailes foi o homem forte da estação mais conservadora das grandes estações norte-americanas, resistindo a tudo incluindo aos ataques lançados pelos dois filhos do magnata Rupert Murdoch, James e Lachlan, nas suas batalhas para chegarem ao topo do império.
Durante essas duas décadas, Murdoch só teve uma resposta para quem ia pondo em causa qualquer coisa que o seu amigo Ailes dizia ou fazia: "Deixem-no em paz, ele sabe o que está a fazer." Mas foi também durante essas duas décadas – e, veio a saber-se mais tarde, desde os tempos daquele primeiro encontro com Richard Nixon, em 1967 – que Roger Ailes foi esculpindo a imagem com que muitos ficaram dele na quinta-feira passada: segundo os testemunhos de dezenas de mulheres, incluindo a estrela Megyn Kelly, o patrão da Fox News passou a vida a fazer comentários de conteúdo sexual e a exigir sexo em troca de trabalho às inúmeras mulheres que foram passando pelo seu gabinete.
Décadas de abusos sexuais
O fim de Roger Ailes aconteceu em Julho de 2016, dez meses antes da sua morte física. Nesse mês, no dia 6, a ex-apresentadora da Fox Gretchen Carlson acusou-o de a ter demitido porque ela se recusara a fazer sexo, e ajudou a soltar dezenas de vozes que se tinham calado desde a década de 1960 – dias depois, outras seis mulheres revelaram as suas histórias de horror com o todo-poderoso patrão da Fox News, e poucas semanas depois já eram 25 os dedos acusatórios.
Por mais admiração que Rupert Murdoch tivesse por ele, o escândalo das escutas ilegais nos tablóides ingleses, em 2011, e a ambição dos seus dois filhos, foram mais do que suficientes para que o divórcio entre os velhos amigos fosse tão inevitável quanto rápido – logo na primeira reacção pública, em Julho do ano passado, os patrões de Roger Ailes anunciaram que iam lançar uma investigação interna na Fox News. Sem o escândalo das escutas ilegais no Reino Unido (a que os Murdoch responderam com desmentidos e desvalorizações), talvez Ailes tivesse contado com mais apoio de Rupert Murdoch no seu último ano de vida. Mas não foi isso que aconteceu, e o homem a quem muitos chamam "monstro" teve de se contentar com uma saída pela porta pequena e uma reforma de 40 milhões de dólares.
No final, a marca de Roger Ailes é tão incontestável quanto polémica. Há muito por onde escolher, mas na sua morte mesmo os mais próximos viram-se obrigados a acrescentarem um "mas". Seja pelas décadas de abusos sexuais, seja pelo jornalismo que incentivou e apoiou na Fox News, Ailes recebeu alguns dos obituários mais impiedosos de sempre, como o que foi escrito pelo jornalista Matt Taibbi: "Somos um povo cheio de ódio, paranóico, desconfiado, que não lê livros, colérico e que tem como principal passatempo insultar e ameaçar na Internet, e somos assim, em grande parte, por causa do ambiente mediático hiperdivisivo que ele descobriu. Ele nunca teve uma alma para vender, por isso vendeu as nossas. Aproveita a próxima vida, seu monstro."