Cuidado com a Língua e sobretudo com a RTP1
Sendo a nossa Língua quase tudo o que precisamos para sermos quem somos, não é aceitável o trato de polé que lhe dá a televisão pública.
Fernando Pessoa disse que a Língua era a sua pátria. Em boa medida, foi a Língua que fez esta pátria ou terá sido a pátria que fez esta Língua? Fizeram-se uma à outra. Provavelmente. Talvez a Língua seja mais que a nossa pátria, pois nunca nos vira as costas. Está sempre connosco.
É quase certo que sem a Língua não podíamos definir onde começava e onde acabava a nossa pátria. Os lusitanos sabiam do que falavam quando se batiam com as legiões romanas.
Os portugueses sabiam do que falavam quando impediam Castela de deitar a mão ao nosso retângulo. Até os franceses, no tempo das invasões napoleónicas.
A nossa Língua é quase tudo. Para amar não são precisas palavras, mas o amor com palavras é outra coisa. Que o digam os amantes que amam. Para mostrar indignação não são precisas palavras, basta o rosto. Mas a carantonha com palavras diz tudo o que se quer dizer.
Quando um homem ou uma mulher dizem na sua Língua “Eu não me calo” é o mundo que fala, é a Língua que lhe dá essa força que os déspotas (grandes ou pequenos) temem. A Língua mete tanto medo aos tiranos e tiranetes que a mandavam cortar aos que falavam livremente. Há centenas de anos atrás.
Uma mulher ou um homem, ou muitas mulheres e muitos homens que inventam uma cura para uma doença, não têm outra maneira de o anunciar que não seja ir ao baú da Língua, retirar as palavras, organizá-las e anunciar a boa nova.
Sabe-se que a Língua é consoante a usam, como tudo, ou não fosse o hábito que faz o monge. Uma Língua bem tratada deixa-nos mais encantados com as palavras que nas asas do ar nos chegam.
Quando o apaixonado diz à apaixonada “meu amor”, é como se aquelas duas palavras transformassem o nosso corpo em cordas de violino e tudo o resto desaparecesse, restasse apenas a explosão de encantamento, apenas porque os apaixonados disseram um ao outro “meu amor” — mesmo em vietnamita, laociano, mongol, húngaro, russo ou alemão ou em qualquer Língua. Quando Camões escreveu “amor é fogo que arde sem se ver”, a gente pensa no que a Língua nos dá e até a interrogação se sem Língua haveria amor, talvez cio.
Shakespeare deu a palavra a Marco António no funeral de César e este leva as palavras onde Sísifo transportou a pedra, mas sem que a pedra rolasse montanha abaixo. “Amigos, romanos, cidadãos emprestai-me os vossos ouvidos… vim para enterrar César e não para louvá-lo… O nobre Brutus disse que ele era ambicioso e era, pagou por ela com a vida pelas mãos de Brutus. Brutus é um homem honrado. Sim, vocês agora choram… percebo que sentem um pouco de piedade por ele… queridos amigos, não vos quero estimular a revolta. Aqueles que praticaram este ato são honrados…” Para que servem as palavras senão para nos abrir novos mundos nas emoções, na inteligência a na sensibilidade?
Sendo a nossa Língua quase tudo o que precisamos para sermos quem somos, não é aceitável o trato de polé que lhe dá a televisão pública. Com efeito, um programa de elevado nível e qualidade como é o caso do “Cuidado com a Língua”, cuja nova série foi emitida num horário errático, com constantes interrupções, a última delas durante um mês seguido, para ser abruptamente interrompida sem qualquer informação aos telespectadores. E o espanto não cessa: o que foi substituir o “Cuidado com a Língua”? Um concurso com o nome da língua do grande Shakespeare — “Brainstorm”!...
Destratar deste modo um programa (único) que, em menos de 15 minutos de duração, faz reluzir a língua de Gil Vicente, Camões, Saramago, Vinicius, Jorge Amado, Manuel Bandeira, Craveirinha, Mia Couto, Viriato da Cruz, Agualusa, Corsino Fortes, Germano Almeida, Alda Espírito Santo, Fernando Sylvan, Helder Proença, diz tudo de quem dirige hoje a televisão pública.
Cuidado, pois, não só com a Língua, mas também com aqueles que dela não fazem sua pátria. E a trocam até por um brainstorm. Coitadinha da tempestade cerebral.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico