A China aprende a jogar futebol em Portugal (e faz negócio)
Vários clubes portugueses têm participação de capital chinês e/ou protocolos para ajudar na formação de futebolistas da China. Mas nem todas as parcerias correram bem.
Noventa e nove vírgula nove por cento (dando ou tirando uma centésima) dos jogos de futebol em Portugal não passam na televisão e, por isso, o domingo à tarde continua a ser o tempo preferido do futebol português para acontecer. Às 15h de um desses domingos, há duas semanas, aconteceu um jogo não transmitido na televisão no Campo de Sucena, em Sintra, que não era suposto acontecer. Houve uma inversão no calendário da sexta jornada da Série G do Campeonato de Portugal (III Divisão), e o 1.º de Dezembro aceitou ser a equipa da casa na primeira volta por pedido do Atlético Clube de Portugal, que não podia jogar em casa por estar proibido de entrar no campo da Tapadinha, em Alcântara. Por quem? Pelo Atlético Clube de Portugal.
O Atlético é um dos vários clubes portugueses que, nos últimos anos, têm tido investimento chinês, um investimento difícil de quantificar num universo tão vasto como é o futebol português. O caso do Atlético é o que tem corrido pior, com a separação total entre o clube, que se mantém na Tapadinha, e a SAD, que controla o futebol profissional. Mas o investimento que vem do Império do Meio não é todo igual. O Desportivo das Aves, por exemplo, tem a participação de uma empresa brasileira de capitais chineses e beneficia de um protocolo com a Federação Chinesa de Futebol para ajudar a construir um centro de estágio Vila das Aves, cidade do concelho de Santo Tirso. Também a norte, o Gondomar tem uma parceria para ajudar na formação de jovens jogadores chineses.
Pinhalnovense e Torreense fazem parte da “rede” da Wsports Seven, uma empresa chinesa que criou ainda um clube de raiz, o Oriental Dragon FC, para desenvolver jovens jogadores do seu país. Outros clubes, como o Cova da Piedade, o ARC Oleiros, o Tourizense, o 1.º Dezembro ou o Atlético da Malveira também têm alguns jogadores chineses. A própria II Liga tem o patrocínio da Ledman, empresa que paga 4,2 milhões de euros para dar o nome ao segundo escalão do futebol nacional até 2019.
Está a cumprir-se, assim, a profecia de Paulo Futre feita durante uma campanha presidencial do Sporting em 2011. O futebol português (e não só) está a abrir-se ao mercado do país mais populoso do mundo e estão a vir “charters de chineses”, como dizia o antigo internacional português. Mas o negócio não tem sido feito nos mesmos termos do que está a ser feito em países como Inglaterra ou Itália (ver texto nestas páginas), em que os grandes clubes das divisões principais são a porta de entrada. Em Portugal, os chineses estão a começar por baixo, pelas divisões secundárias, com investimentos mais modestos e objectivos diversos.
Made in Gondomar
Gondomar é o local improvável onde está a ser preparado o futuro do futebol chinês. Nada menos que 13 jovens jogadores chineses estão a fazer a sua aprendizagem no clube desta cidade do distrito do Porto. Muitos deles são internacionais pelas selecções jovens e alguns estão na equipa chinesa de sub-19, que está a disputar o campeonato asiático da categoria no Bahrein e que serve de apuramento para o Mundial de sub-20, que irá decorrer em 2017 na Coreia do Sul. Vivem todos numa quinta em Ferreira, têm aulas de Português e estão no Gondomar SC para aprender.
Venham da China ou de Portugal, todos os futebolistas têm o seu sonho. O de Kudirat Ableti, guarda-redes de 19 anos, é de jogar um dia no Real Madrid ou no Borussia Dortmund, mas, enquanto não chega ao Santiago Bernabéu ou ao Westfalenstadium, Kudirat está no Complexo Desportivo Valbom a defender as redes da equipa B do Gondomar num jogo-treino contra a equipa principal, que está na Série C do Campeonato de Portugal. Kudirat é um guarda-redes alto e esguio, ágil e com bons reflexos e, muito por causa dele, o Gondomar A demora a fazer golos. Na bancada, Agostinho Oliveira diz que Kudirat é o melhor guarda-redes chinês no escalão sub-19. Como os outros, ainda tem de aprender. Mas tem potencial e pode, pelo menos, chegar à baliza de um clube da Superliga chinesa, que tem de ter guarda-redes nacionais.
Agostinho Oliveira, uma das grandes referências do futebol de formação em Portugal (e chegou a ocupar interinamente o cargo de seleccionador nacional), é consultor da Federação Chinesa de Futebol e o coordenador deste projecto que colocou em Gondomar mais de uma dezena de futebolistas chineses. “Só alguns clubes de topo na China é que têm algo parecido com a formação”, explica Agostinho Oliveira para justificar esta opção de colocar alguns dos melhores jovens futebolistas da China a aprender em Gondomar.
Mesmo assim, acrescenta, chegam tarde a Portugal porque só podem residir no país a partir dos 18 anos, depois de assinarem contrato profissional para terem um visto de residência. Abaixo dos 18 anos, só podem permanecer um ou dois meses, e, nestas condições, estão alguns em Gondomar para um estágio de curta duração. Não há aqui um objectivo competitivo nesta equipa B do Gondomar. A formação é o objectivo prioritário, compensar as falhas de um sistema chinês que tem poucas competições para as camadas jovens. E é isso que Agostinho Oliveira vai tentando fazer em Gondomar com este grupo reduzido, ao mesmo tempo que vai desenvolvendo um plano para fazer evoluir as competições chinesas de jovens.
A parceria começou em 2013. “Uma empresa contactou-nos para meter cá dois jogadores chineses. Começou por aí. Depois, fizemos um protocolo com eles para ter dez, 12 jogadores. Como não queríamos tê-los na equipa de juniores, resolvemos criar uma equipa B”, explica Álvaro Cerqueira, presidente do clube nortenho. Alguns foram sendo integrados, posteriormente, na equipa principal e dois deles até já deram o salto para uma equipa da I Liga, o guarda-redes Yeerzati Teerijeti e o avançado Tang Shi (ambos sem minutos em jogos oficiais até à jornada deste fim-de-semana). O protocolo, acrescenta o presidente do Gondomar, é renovável por períodos de dois anos e os indicadores do parceiro chinês, para que a parceria se prolongue para lá da época 2016-17, são positivos. Para já, este acordo vai ajudando a equilibrar as contas do clube, que não tem despesas com esta parceria e ainda recebe algum dinheiro. Álvaro Cerqueira não diz quanto.
À medida que o jogo entre “A” e “B” decorre, Agostinho Oliveira vai fazendo comentários aos posicionamentos dos jogadores em campo, apontando, por exemplo, algumas coisas que precisam de ser corrigidas na movimentação do avançado e que são fruto de uma formação de base deficiente. Mas também fica satisfeito ao ver que outras coisas já foram corrigidas. No terreno, José Nuno Azevedo, antigo lateral com uma carreira quase toda ligada ao Sp. Braga, vai dando as ordens ao Gondomar B, que também tem alguns jogadores portugueses e que consegue aguentar o empate sem golos até ao intervalo, num jogo dividido e com oportunidades para os dois lados.
A comunicação é que não é fácil, apesar das aulas de Português quase diárias. Entra em campo Miguel Xu, nascido no Porto e de família chinesa, com um domínio perfeito de mandarim e português. Formado em Engenharia, Miguel serve como tradutor para o grupo de chineses e vai com eles para todo o lado. Fica no banco ao lado do treinador para ajudar nas instruções à equipa e é uma ajuda fundamental na hora de, a pedido do P2, juntar todos os jogadores chineses para uma foto de grupo no centro do campo.
É em poucas palavras que Kudirat, o guarda-redes, e Li Yang, um defesa, explicam o que é diferente para eles em Gondomar. “O treino e o jogo têm mais intensidade”, diz Yang, um central que tem o madridista Sérgio Ramos como referência da sua posição. Kudirat, por seu lado, gostava de ser mais como o alemão Manuel Neuer, do Bayern Munique. “Aqui, um guarda-redes tem de jogar bem com os pés. E sinto que já evoluí”, diz o jovem guardião. Ambos partilham as sensações na adaptação a Portugal — “difícil” — e na avaliação ao país de adopção — “gosto muito” —, mas com a consciência de que este é um ponto de passagem. Palavra a Li Yang: “Gostava de mostrar a minha habilidade numa competição superior.”
Os dois Atléticos
Há muito que o Atlético Clube de Portugal anda afastado dos seus tempos de glória. Entre os anos 1940 e 1970, o histórico clube lisboeta cumpriu 24 temporadas na primeira divisão e chegou a ser duas vezes terceiro classificado (1944 e 1950), mas desde 1977 que o campo da Tapadinha, em Alcântara, deixou de ser destino para o futebol de primeira, e nas últimas quatro décadas tem alternado entre o segundo e o terceiro escalões. Como muitos clubes, o Atlético foi perdendo força e gastando mais do que podia, e entrou em pré-falência.
Entra em cena a Anping Football Club, empresa sediada em Hong Kong e referenciada pela UEFA como de risco elevado quanto a possíveis ligações a manipulação de resultados. No Verão de 2013, adquire 70% da Sociedade Desportiva (SAD) do clube alcantarense e assume a gestão do futebol profissional, ficando o clube com os restantes 30% — Nelo Vingada, experiente treinador português, passou brevemente pela liderança da sociedade, tal como Almani Moreira, antigo futebolista do Boavista e Hamburgo, entre outros.
Não se pode dizer que o projecto desportivo tenha corrido bem, ou razoavelmente bem. Na verdade, em três temporadas na II Liga, o Atlético terminou três vezes nos lugares de descida de escalão. Em 2013-14, terminou em último, mas manteve-se porque o campeonato foi alargado a 24 equipas. Em 2014-15, foi 22.º, mas beneficiou na despromoção administrativa do Beira-Mar para continuar na competição. Em 2015-16, voltou a ser 22.º e, desta vez, não houve nenhuma decisão de secretaria que lhe valesse.
A relação entre clube e SAD nunca foi pacífica e, já em 2014, o então presidente do Atlético, Almeida Antunes, queixava-se da falta de diálogo com os administradores chineses. “Achincalham, gozam e brincam connosco”, dizia Almeida Antunes numa entrevista ao Record. A nova direcção do Atlético avançou para um corte radical com a sociedade chinesa, impedindo todas as pessoas ligadas à SAD, equipa de futebol incluída, de entrarem na Tapadinha. E assim chegamos a esta situação de haver dois Atléticos no futebol português, com as mesmas cores e o mesmo emblema, mas que não são a mesma equipa.
“Não temos relação nenhuma [com a SAD]. É feita de ultimatos para regularizarem as situações. Não vieram fazer parcerias e o objectivo nunca foi engrandecer o nome do clube”, diz ao P2 Armando Hipólito, presidente do Atlético recentemente eleito. Hipólito fala de uma dívida da SAD à Segurança Social que ultrapassa os 100 mil euros e que faz com que o clube não seja elegível para uma série de subsídios, acrescentando que também há diversas dívidas ao clube pela utilização das instalações da Tapadinha e a vários fornecedores. Quanto a eventuais dívidas ao fisco, Armando Hipólito não sabe, porque a administração da SAD não lhes mostra as contas.
A equipa que está ligada ao clube, e que funcionava antes como equipa B, está a competir na I Divisão distrital de Lisboa, a equipa da SAD está na Série G do Campeonato de Portugal e, à entrada para a sétima jornada (que se disputa neste domingo), estava em último lugar, com apenas um ponto (um empate e cinco derrotas). Ainda assim, a equipa da SAD conseguiu arrastar meia dúzia de adeptos para aquela tarde de sol em Sintra, familiares de alguns jogadores.
Sem poder entrar na Tapadinha, a equipa do Atlético SAD tem feito jogos em casas emprestadas, no campo do “Fofó” e num campo secundário do Real Massamá, e vai treinando onde pode. José Manuel Francisco, director desportivo da equipa da SAD (e pai de Bernardo, o guarda-redes), defende a sua equipa e a sua administração, devolvendo para o clube as acusações de falta de diálogo. “O que lhe posso dizer é: não fomos nós que fechámos a porta a ninguém. Sempre que nos foi solicitada uma conversa, nós tivemo-la. Não me vou lá pôr à porta, à espera que alguém me chame. Reuniões inconclusivas? Se calhar não é a conclusão que querem, mas não vou entrar em pormenores”, defende José Manuel Francisco.
Do investidor chinês, José Manuel Francisco nada tem a apontar. “Não tenho nenhuma razão de queixa. Estávamos a dois dias do início de época e não tinha bolas nem equipamentos. Em dois dias, isso apareceu. Dentro das limitações, temos as condições mínimas para trabalhar. Obviamente que, em termos desportivos, a estadia desta SAD não foi o que se queria, com três despromoções em três anos, mas também é preciso que se diga que, quando o Beira-Mar desceu, o Atlético só ficou na II Liga porque tinha tudo em dia”, defende o director desportivo, que espera uma solução a bem entre as duas partes, até porque “SAD e Atlético são a mesma coisa”.
Ao contrário do desejo expresso por José Manuel Francisco, as coisas não vão mesmo acabar bem. O clube deu um prazo à SAD para reconstruir pontes e apresentar contas, mas, segundo Armando Hipólito, nada aconteceu. Como não havia no acordo de 2013 uma cláusula que permitisse ao clube a recompra das acções ao investidor chinês, diz o presidente do clube, o Atlético vai avançar para um pedido de insolvência da Atlético SAD, de forma a poder formar outra sociedade no futuro e salvaguardar o património do clube no presente.
Bo, o trintão que se vai embora
A rotina diária de Bo Hao começa às 7h da manhã, algures em Lisboa. Depois, vai para o trabalho de transportes públicos. Primeiro o metro e, depois, o comboio, para chegar às 9h em ponto ao estádio do Sport União Sintrense, onde joga como defesa desde o início da temporada — só precisava de estar lá às 9h30, mas o defesa chinês faz questão de chegar meia hora antes. Depois, faz o caminho de volta e, dependendo do nível de cansaço, talvez vá ao restaurante para almoçar (mais cansado) ou vá para casa cozinhar (menos cansado). A seguir, talvez faça uma pequena sesta, uma hora de corrida no Parque das Nações, algum convívio com amigos chineses e portugueses, umas partidas de snooker, jantar, algumas leituras (em português) e descanso — dorme sempre sete horas. No dia seguinte, repete tudo, menos ao domingo (dia de jogo) e segunda-feira (folga). Mas esta rotina de Bo Hao está quase a acabar.
O trintão Bo Hao é um pouco diferente dos outros futebolistas chineses que andam pelo futebol português, quase todos entre os 18 e os 20 anos. Bo, pelo contrário, chegou em 2012, com 26 anos, andou pelo Vianense, Olivais e Moscavide, Operário Lisboa e Alta de Lisboa, antes de chegar ao Sintrense, que também tem um investidor chinês, este com raízes de duas décadas em Portugal. Bo já tem, no entanto, data para regressar a casa. “Em Janeiro, volto para a China. Para que clube. Ainda não posso dizer, é segredo”, diz o sorridente futebolista, comunicativo e bem-disposto, num português imperfeito mas suficientemente desenvolto para contar um pouco da sua história ao P2.
Na conversa, o gesto também é tudo. “Portugal. Adoro Portugal”, diz, ao mesmo tempo que leva a mão ao lado esquerdo do peito, apontando o coração. Até o hino português aprendeu, confessa. Bo, que vive sozinho, mas que chegou a ter uma namorada portuguesa, está agradecido por tudo o que tem aprendido no futebol português, que “tem mais qualidade que o futebol chinês”. “O futebol na China é muito fraco. Os treinos lá têm muita corrida e pensa-se pouco”, diz Bo Hao, que decidiu vir para Portugal por influência de Quinzinho, avançado angolano que chegou a jogar no FC Porto, e que foi seu colega de equipa na China.
“Já cá está há alguns anos e o facto de falar português é uma mais-valia”, diz Luís Loureiro, antigo médio do Sporting e do Sp. Braga que é o treinador do Sintrense e que nunca tinha trabalhado com um jogador chinês. Ajuda à comunicação com o treinador e à integração na equipa. “É um rapaz que está fora do país dele, mas teve uma adaptação fácil, e é um bom rapaz, simples e afável, que gosta de aprender. Está completamente integrado. Não é o Bo e o resto da equipa. É um grupo”, diz o antigo internacional português.
Apesar de ter uma licenciatura em Gestão, Bo quer continuar no futebol como treinador, depois de deixar de ser jogador, o que irá acontecer daqui a três ou quatro anos. E, para aprender a ser treinador, Bo quer voltar a Portugal. “Portugal é muito importante na minha vida. Nunca vou esquecer. No futuro, quero viver em Portugal”, diz. E volta a apontar para o coração.