A guerra esquecida do Médio Oriente, cada vez mais longe da paz
Até há 18 meses, os iemenitas já viviam com muitos problemas. Quando a Arábia Saudita decidiu transformar uma guerra civil num conflito regional e sectário, tudo piorou. A acreditar nos últimos dias, ainda há muito por onde o caos no Iémen pode crescer.
Se a tragédia não fosse tão imensa dir-se-ia que o que aconteceu nos últimos dias no Iémen é a rábula de um humorista que acordou inspirado. Quando estaria prestes a ser anunciado um cessar-fogo de 72 horas para se voltar a tentar negociar uma solução política num conflito que já toda a gente percebeu não ter resolução militar, o que faltava de inferno abateu-se literalmente sobre o Iémen.
Sábado, a coligação regional liderada pela Arábia Saudita bombardeou o lugar onde decorria o funeral do pai de Galal al-Rawishan, o ministro do Interior do governo rebelde do movimento huthi. Morreram 140 pessoas, 500 a 600 ficaram feridas (incluindo o ministro Rawishan) – entre os mortos do raide aéreo em Sanaa, a capital, contam-se muitos membros de importantes tribos do Norte (os huthis são do Norte), o presidente da câmara de Sanaa, Abdulqader Hilal, e vários líderes políticos e militares que apoiavam as conversações de paz com o governo no exílio (chefiado pelo Presidente Abed Rabbo Hadi e internacionalmente reconhecido), e tinham credibilidade suficiente para garantir que um acordo seria posto em prática.
Não acaba aqui. No dia seguinte, um contratorpedeiro americano, o USS Mason, foi alvo de um ataque com mísseis disparados de território rebelde quando passava no mar Vermelho. Os mísseis – que os huthis asseguram não ter lançado – falharam o alvo. Mas o Pentágono sugeriu que pode retaliar. Quem os disparou, disse esta terça-feira em Washington o capitão Jeff Davis, porta-voz do Departamento da Defesa, fê-lo “por sua conta e risco”. Questionado sobre se isso significa que os americanos estão a preparar para responder, David disse: “Não confirmo isso neste momento”.
Os mísseis contra o navio de guerra falharam o alvo mas podem ter provocado uma mudança de atitude na Administração de Barack Obama.
Quando os sauditas decidiram intervir no Iémen, acusando o Irão de apoiar os rebeldes huthis, tribo de confissão zaidita (um ramo do islão xiita) que avançava então para a conquista de Áden, a segunda cidade do país, Obama, aceitou fornecer “apoio logístico e partilhar informações dos serviços secretos” (a CIA opera no Iémen desde pouco depois do 11 de Setembro). Os Estados Unidos continuaram também a vender armas a Riad (só em 2015, as vendas ultrapassaram os 18 mil milhões de euros).
As pressões para deixar cair o aliado saudita, pelo menos no que respeita ao Iémen, já eram fortes. E quando os aviões da coligação regional liderada por Riad que combate os huthis desde Março de 2015 atingiram o funeral, no sábado, Washington fez saber que vai rever o seu apoio “para melhor o alinhar com os princípios, valores e interesses dos EUA”. Menos de 24 horas depois, eram disparados mísseis contra o navio que passava ao largo do Iémen.
Marionetas do Irão?
Recuemos um pouco. O actual Presidente no exílio, Hadi, sucedeu a Ali Abdullah Saleh em 2012, no decorrer de um acordo promovido pelos sauditas, que quiseram salvar o regime das revoltas que desde o ano anterior assolavam vários países árabes (começaram na Tunísia, chegaram ao Iémen, o país da ponta sul da Península Arábica, e até passaram pelo território saudita, onde foram brutalmente esmagados).
Os combates entre huthis e os dirigentes em Sanaa eram antigos e tinham piorado em 2009. Não há provas de que os huthis actuassem como “marionetas do Irão”, expressão usada por Riad. A verdade é que em Março do ano passado, os combatentes desta tribo estavam prestes a tomar Aden (na altura, Hadi estava nessa cidade portuária, a segunda maior do país) – Sanaa tinha caído para os rebeldes meses antes.
Mais importante ainda para os sauditas: na Suíça avançavam a passos largos as negociações sobre o programa nuclear iraniano, que seriam terminadas no fim de Junho.
Este acordo anunciava o fim do isolamento iraniano no mundo, num momento que Teerão já estendia a sua influência de Beirute (através do movimento xiita libanês Hezbollah) a Bagdad (onde apoia os sucessivos governos xiitas e a milícias armadas da mesma confissão), passando por Damasco (onde o Irão oferece tropas e armas ao ditador sírio Bashar al-Assad). Para a potência sunita, que sempre disputou a hegemonia com o Irão, a possível influência iraniana no país da sua fronteira sul era demasiado.
Os sauditas fizeram o possível por envolver muitos países árabes neste conflito, mas a verdade é que esta foi a sua primeira guerra em muito tempo – e numa fase e contextos novos. Em resposta ao expansionismo iraniano, e pouco depois da tomada de posse de um novo rei (Salman chegou ao trono em Janeiro de 2015), Riad decidiu que teria de tomar em mãos os seus próprios problemas – em vez de contar, como habitualmente, com os EUA para defender os seus interesses, até porque Washington estava a negociar com Teerão e, segundo Riad, não tem uma estratégia clara para os diferentes problemas de segurança do Médio Oriente.
Al-Qaeda e Daesh
O resultado é que o Iémen, o país de todos os problemas – sem água, a ficar sem petróleo, com níveis de pobreza muito elevados, 60 milhões de armas espalhadas por uma população de 24 milhões – se viu no meio desta disputa geoestratégica. E os iemenitas desesperam e morrem, em bombardeamentos, de fome, de doenças, em atentados da Al-Qaeda na Península Arábica (o ramo mais perigoso do que sobra do grupo fundado por Bin Laden, que aqui tem o seu quartel-general) e agora, também, do Daesh (o autoproclamado Estado Islâmico), que aproveita qualquer ameaça de Estado falhado para se instalar e prosperar entre o caos.
Na sequência do ataque ao funeral, a ONU pediu um inquérito internacional e Washington um cessar-fogo imediato para ajudar as populações. Saleh, o ex-ditador, agora aliado dos huthis (antes, era o homem de Riad), apelou à mobilização na fronteira saudita para “vingar as mortes de Sanaa”. Houve manifestações e não se sabe o que virá a seguir. Só se sabe que não é a paz.
Os rebeldes huthis vêem nos ataques sauditas que vitimam civis pretexto para lançar mísseis a partir da fronteira contra localidades do sul da Arábia Saudita. Riad sabe que não há solução militar mas cada vez parece ter mais a perder num acordo político, já que a capacidade militar dos huthis não tem sido enfraquecida. Restaria aos iemenitas que Washington deixasse de apoiar os sauditas, deixando-os sem informações dos serviços secretos e apoio logístico essencial. Se isso não acontecer, os iemenitas não têm muito mais quem lhes possa valer.