A guerra civil iemenita não é um conflito sectário mas pode vir a ser
Há narrativas que precedem os factos e mitos que se transformam em realidades. Esse é um dos riscos do que hoje se passa no Iémen.
Bashar al-Assad tanto insistiu que as manifestações pró-democráticas contra o seu regime eram obra de sunitas radicais que o autoproclamado Estado Islâmico lhe fez a vontade. Uma análise que hoje até serve para contar parte da tragédia que destrói a Síria não estava lá no início de tudo. O que lá estava era uma população farta de um regime corrupto e tirano, ávida de maior igualdade e liberdade. Na rua, e nos protestos pacíficos – que ainda acontecem em algumas cidades –, havia cristãos, alauitas (ramo do xiismo da família no poder) e muito mais sunitas, a esmagadora maioria da população síria.
Da mesma forma, é cómodo para alguns que lançaram o caos da região com a decisão política de invadir o Iraque descrever toda a mortandade que se seguiu no país como um inevitável conflito existencial entre sunitas e xiitas, os dois grandes grupos em que se dividem os muçulmanos. “Temos de nos libertar da ideia de que ‘nós’ causámos isto. Não é verdade”, escreveu o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair, sugerindo assim que xiitas e sunitas se teriam digladiado com ou sem invasão.
O Iémen já foi palco de várias guerras civis. Aliás, nasceu separado, o Iémen do Norte primeiro, tornando-se independente dos otomanos, o do Sul depois.
Recuando até à guerra civil do Norte do Iémen (1962-1970), enquanto o Sul ia evoluindo de um protectorado do Sul da Arábia para a República Democrática do Povo do Iémen (marxista, criada em 1970), é curioso verificar que a sunita Arábia Saudita apoiou as forças que lutavam por um imã zaidita (o ramo do xiismo dos huthis), enquanto o pan-árabe e secular sunita Egipto ajudou os revolucionários que queriam derrubar o regime religioso.
A obsessão saudita
Este exemplo do passado diz bastante sobre o que move os sauditas. Se então Riad se preocupava em evitar um contágio republicano e secular na sua fronteira, agora não suporta a ideia de uma força que vê como xiita tomar o controlo de um país com o qual partilha uma enorme fronteira.
É que, desde 2011, quando as revoltas que começaram na Tunísia abalaram grande parte do Médio Oriente, os sauditas passaram a estar ainda mais obcecados em esmagar qualquer movimento minoritário que ameace o statu quo – não tivesse a monarquia onde se pratica uma das mais ortodoxas e radicais versões do islão sunita (wahabbismo) a sua própria minoria xiita, estrategicamente concentrada nas zonas do país mais ricas em petróleo.
Voltemos ao Iémen. Ao contrário do que descrevem a Arábia Saudita, o Egipto, os Emirados Árabes Unidos ou o agora exilado Presidente Abd Mansour Hadi – o único candidato às eleições pós-protestos de 2011, na sequência de um acordo negociado pelos sauditas para o afastamento de Abdullah Saleh, de quem Hadi era vice –, não foram as armas nem o dinheiro do Irão que permitiram os extraordinários avanços dos huthis, que, no último ano, desceram do seu feudo, no Norte, para tomarem a capital, Sanaa, e as mais importantes cidades do país.
Teerão dá algum dinheiro aos huthis, isso parece ser consensual. Mas os huthis nunca precisaram dos iranianos para as seis guerras que travaram com Saleh. Nem para conquistarem a Hadi grande parte de um país que nunca teve um Governo central forte. Bastou a fraqueza deste e a improvável aliança com Saleh, que conservou o apoio de unidades do Exército.
Do mito à profecia
É mais fácil para os dez países envolvidos, e para os Estados Unidos, que começaram por partilhar informação mas já dão apoio logístico e enviam armas, descrever este conflito como uma intervenção inevitável para impedir as ambições expansionistas do Irão numa área particularmente sensível do comércio marítimo mundial. Mas a verdade é que no Iémen havia uma guerra civil e Hadi, que estes actores insistem ser o “líder legítimo”, nunca teve grande legitimidade aos olhos da maioria dos iemenitas.
Este era e continua a ser um conflito político, como a maioria, alimentado por batalhas por território, poder e influência. “Ver a sombra do Irão atrás de cada desafio que enfrenta reduz a capacidade dos sauditas para fazerem avaliações estratégicas sensatas do estado de equilíbrios na região”, escreve a investigadora Nussaibah Younis, do Project on Middle East Democracy, de Washington.
Pior. Como escreve Khaled Diab (jornalista com dupla nacionalidade, egípcia e belga) no diário israelita Ha’aretz, é frequente que os mitos se transformem em profecias. “Sendo conveniente para alguns interesses estabelecidos – dos políticos à espera de se aproveitarem aos jihadistas actuais – descrever a agitação no Médio Oriente como batalhas sectárias, o resultado é que, de tanto repetida, esta profecia acaba por se concretizar.”