E aqueles anos em que fomos todos mestres kung fu?

Estreada em 1986, a série Os Jovens Heróis de Shaolin contava a história de três jovens aspirantes a mestres de Shaolin. Aos sábados à tarde, suspendia-se a realidade e ditavam leis os saltos impossíveis e os movimentos com som de vendaval. Bendita fantasia.

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1986 foi um bom ano. O Falco a cantar Rock me Amadeus, os Europe a fazerem a contagem final para não se sabe o quê e o videoclipe de You can cal me Al, em que Chevy Chase dobrava a voz de Paul Simon, a rodar vezes sem conta na TV. 1986. Portugal membro de pleno direito da então CEE, Dora a pedir à Eurovisão que não fosse má para ela (foi, claro – a Eurovisão era sempre má para nós) e a selecção nacional a regressar aos mundiais de futebol no México (e que bela rebaldaria foi essa participação).

1986 foi um ano especial por outra razão. Foi o ano em que toda uma geração estreitou uma relação com o cantonês que se manteve intensa, pelo menos, até ao ano seguinte. De um momento para o outro, não era surpreendente encontrar na rua duas pessoas, entre os sete e os 18 anos, digamos, que se descobriam imediatamente próximas pela partilha dessa competência linguística recentemente adquirida. Para os não-iniciados, seria simplesmente bizarro darem por si a ouvir dois petizes a entoarem em conjunto o seguinte linguajar (pedimos antecipadamente desculpa aos leitores fluentes em cantonês pelo cataclismo fonético que se segue). Ia então assim: “Mou fu/ câme tiu-mi/ sin min-si/ eil-pûr/ toc si-ú bak pen-si/ si-iu fei/ tchôn thó môi san/ môi si san/ tchôn klen-gui” – e depois continuava por aí fora, naqueles que seriam, para os tais não-iniciados, dois minutos de estranho delírio partilhado entre gente que sabia qualquer coisa que eles não sabiam. Mas, na verdade, haveria nos anos de 1986 e 1987 poucos não-iniciados naquela versão improvisada do cantonês. Culpa de uma série intitulada Os Jovens Heróis de Shaolin, criada em Hong Kong e causa de inaudita felicidade semanal – passava aos sábados à tarde.

Os Jovens Heróis de Shaolin não era simplesmente uma série com artes marciais, então em alta no mercado juvenil de alugueres de cassetes VHS no clube de vídeo mais próximo, de onde se traziam filmes do genial Bruce Lee ou versões americanas da fonte original, feridas de demasiada americanice em tempos de Guerra Fria e, consequentemente, sem piada nenhuma (Ninja Americano?, por favor...). Os Jovens Heróis de Shaolin eram a coisa a sério. Eram como os bons filmes de mestre Lee, mas em episódios semanais de 50 minutos. E não negligenciemos o que se aprendia ali sobre a história do Império do Meio – o lúdico espectacular unido a pedagogia séria.

A saga conta o percurso de três amigos na sua aprendizagem para se tornarem mestres do templo Shaolin na China de meados do século XVIII. Paralelamente, os três patriotas conspiram para derrubar a dinastia Ching dos Manchu e devolver o poder à Dinastia Ming dos Han. Drama histórico, apesar do recurso recorrente ao humor, Os Jovens Heróis de Shaolin tinha como principais protagonistas Hung Hei Kwun (interpretado por Shek Sau), Fong Sai Yuk (Stephen Tung) e Wu Wai Kin (Michael Miu). Os dois primeiros são figuras lendárias do folclore chinês enquanto mestres de artes marciais: Hung Hei Kwun, acolhido num templo Shaolin enquanto fugia dos líderes Manchu, com quem se incompatibizara, tornar-se-ia no século XVIII um dos grandes mestres kung fu; Fong Sai Yuk, por sua vez, figura em contos tradicionais desde o mesmo século e a sua história foi transporta diversas vezes para cinema ou televisão desde a década de 1970 – devia a sua mestria ao talento exímio da mãe nas artes marciais, e lá a encontramos em posição de destaque no episódio de abertura de Os Jovens Heróis de Shaolin, mostrando ao filho com quantos voos impossíveis e saltos sobrehumanos se constrói um mestre.

É neste momento que se impõe uma correcção: quem assina este texto, tal como, julga ele, 90 por cento dos espectadores de Os Jovens Heróis de Shaolin, não fazia a mínima ideia do contexto histórico acabado de descrever. Não era isso que nos levava a decorar os versos em cantonês da canção do genérico.

Os Jovens Heróis de Shaolin foi exibido originalmente em Hong Kong em 1981. Chegou a Portugal cinco anos depois, o que tendo em conta o ritmo das coisas na televisão portuguesa da altura significa que foi exibida praticamente em simultâneo nos dois territórios. As coisas chegavam realmente com atraso. Pensemos noutra canção preservada na memória: "Robin Hood, Robin Hood, riding through the glen/ Robin Hood, Robin Hood, with his band of men". Também a ouvíamos, provavelmente em 1986, mas era reposição de série criada em Inglaterra em 1955, com o garboso Richard Green como figura principal, que passou pela primeira vez em Portugal já próximo dos 1970. Enquanto isso, víamos de manhã Bonanza, a do Michael Landon jovem nos anos 60, e, para nosso espanto, encontrávamos à tarde o mesmo Michael Landon, 20 anos mais velho e cristianizado à americana, ao lado do seu colega barbudo e mortal, em Um Anjo na Terra.

Os Jovens Heróis de Shaolin chegaram atrasados como todos os outros, mas, primeiro, os nossos olhos pré-adolescentes não distinguiam tempos. As cores, que tinham acabado de chegar com a nova televisão em caixa de madeira, misturavam-se com o preto-e-branco, tal como os anos 60 do Velho Oeste com a década de 1950 do medieval Robin dos Bosques. Era tudo o mesmo universo, indistinguível  quando somos crianças não sabemos muita coisa das divisões do mundo (nem das distâncias do tempo). Acima de tudo, Os Jovens Heróis de Shaolin tinham uma aura de mistério irresistível que, a pouco e pouco, se foi transformando em familiaridade  como sempre acontece nas séries. A cultura distante tornava-se próxima à medida que conhecíamos melhor o humor e o temperamento das personagens, enquanto os seguíamos nos amores e nas aventuras, enquanto superavam prova atrás de prova no templo de Shaolin. Ou então, e se calhar esta é a verdade, o que nos colava os olhos ao ecrã era mesmo o gosto por porrada bem coreografada. Porrada certamente, mas elegante, galante e gloriosamente fantasiosa.

Cada episódio era composto por, digamos, dois minutos de diálogo, um curto momento de contexto, seguido de cinco minutos de aulas ou combates em que cada movimento cortava o ar com som de vendaval enquanto dois corpos se engalfinhavam em dança bem coreografada. Depois, mais dois minutos de diálogo – uma piada para descontrair, uma informação importante para o avançar da acção –, mais porrada da boa e assim sucessivamente.

A ansiedade tomou conta de nós quando a RTP começou a anunciar a estreia da série com excertos do genérico inicial. A partir da data da estreia, as corridas de bicicleta pelo campo, a taxidermia aplicada nos animais nele descobertos – já falecidos, naturalmente, que a crueldade não morava ali – ou os céus analisados demoradamente com binóculos à procura de sinais de vida inteligente extraterrestre eram obrigatoriamente interrompidos aos sábados à tarde.

Só o genérico já justificava a interrupção das actividades. A música era perfeita. Dramática mas sem excessos, orelhuda mas majestosa e adornada por orquestrações de veludo cabaré, colheita vintage anos 1970. O ritmo discreto mas eficiente insinuava-se até chegar ao refrão tocado pelo tom vitorioso, mas acometido de modéstia – yin e yang em acção logo na introdução. E depois as imagens: o mauzão com pinta de feiticeiro, a mestre maternal dando lições ao filho, amparado numa longa passadeira de tecido vermelho que, ali, ganhava densidade granítica, ou o protagonista a carregar uma taça cerimonial maior do que ele (e a ferver, senhoras e senhores). Bendita suspensão da realidade.

Em 2005, um Prof. Horta foi entrevistado para o programa Pop Up da RTP 2, quando da edição em DVD da série. Mestre de kung fu, confessou que foram Os Jovens Heróis de Shaolin que lhe mostraram a vocação que desconhecia. Em 2016, descobrimos, não sem algum espanto, que Os Jovens Heróis de Shaolin não foram um sucesso planetário. Aparentemente, a série saltou as fronteiras de Hong Kong para se fixar em Portugal, Espanha e pouco mais. Talvez isso a torne, agora, ainda mais interessante. É um segredo muito nosso. Todos juntos, cantemos em surdina (perdão eterno aos falantes de cantonês, mas é mais forte do que nós). “Mou fu/ câme tiu-mi/ sin min-si/ eil-pûr/ toc si-ú bak pen-si/ si-iu fei/ tchôn thó môi san/ môi si san/ tchôn klen-gui”.

Esta série é publicada às segundas e às terças-feiras. Próxima: O Justiceiro

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