Quase 840 minutos nos bastidores do congresso socialista

O PÚBLICO esteve com António Costa por detrás do palco da reunião magna que juntou os socialistas na zona da Expo, em Lisboa, este fim-de-semana

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Dezasseis anos depois de participar num congresso do PS, Guterres regressou. Costa fez questão de o acompanhar quando deixou a FIL Nuno Ferreira Santos

I don’t need to fight to prove I’m right”....

“Olhe que não sabia da música”, diz António Costa a sorrir, já a prever as analogias que a letra poderia trazer. “Como é que é?”, pergunta mais tarde. “Não preciso lutar para provar que estou certo”. Volta a sorrir. A verdade é que não se importou com a escolha da música do vídeo de abertura do congresso. Servia que nem uma luva à mensagem que trazia. Afinal, provar que está certo sem guerras, mas com a arma do consenso na mão (mesmo que só à esquerda do PS), era o objectivo por trás de uma reunião sem história de conflito.

Se ao longo dos dois dias em que o PÚBLICO o acompanhou nos bastidores foi improvisando algum do guião, a mensagem que queria passar estava bem estudada e foi preparada longe do olhar de todos. O discurso ao congresso na pele de secretário-geral do PS foi rabiscado ainda na residência de São Bento, quando se fechou por alguns momentos ao final da tarde de sexta-feira. “Ele também se isola", conta uma das assistentes de Costa. Ninguém diria.

Na sexta-feira à noite, mal chega à Feira Internacional de Lisboa (FIL), Costa dirige-se para uma sala atrás do palco e apressa-se a rodear-se dos seus. "Pede para vir aqui o Pedro Nuno, a Mariana, a Ana Catarina e o César", diz a Francisco César, presidente da Comissão Organizadora do Congresso. De comando na mão, vai percorrendo as notícias que passam nas quatro televisões da sala. Pára naquela que mostra cheias em França e a morte de migrantes a tentarem chegar à Europa, uma das suas causas preferidas. "Já viu isto? Morreram mais de mil pessoas numa semana!" A política pura e dura estava guardada para mais tarde, para o discurso de 45 minutos no palco do congresso que abriria, na sexta-feira, a primeira reunião dos socialistas depois de montado o Governo preso por três fios de tamanhos diferentes. 

António Costa andou bem disposto. Não teve crises para gerir, por estes dias, e isso deu-lhe liberdade para fazer um conclave mais solto, sem grandes preocupações, sem grande oposição e com um sorriso de quem sabe que quem manda no Governo, e no partido, é ele. Não teve de se preocupar com as listas para os órgãos do partido. Essas tinham sido alinhavadas com Ana Catarina Mendes nos dias antes e faltavam apenas alguns pormenores. Por isso divertiu-se com os pequenos pormenores, mas grandes para a mensagem.

"Já viu o que eu disse a 30 de Novembro de 2014? Hum?", pergunta a Pedro Nuno Santos, a quem, apesar da proximidade no Governo continua a tratar na terceira pessoa. Aponta para um caderno onde tinha tirado notas para ler aos congressistas. A frase foi bem apanhada, defende Costa. "Foi a Mariana que descobriu. Vou lê-la. Novembro de 2014. Em Novembro de 2014...", vai repetindo, contente por ter, na mão, a prova em palavras de que defendia há muito que a ‘geringonça’ era tão legítima quanto a ‘caranguejola’ (nome que Carlos César deu ao PSD/CDS), que é como quem diz: "Que fique claro: nós não excluiremos os partidos à nossa esquerda da responsabilidade que também têm de não serem só partidos de protesto, mas de serem também partidos de solução para os problemas nacionais". Estava feita a defesa de que uma solução com PCP e BE era tão legítima como uma coligação à direita.

Esta frase que ecoou no discurso de abertura do congresso foi preparada horas antes, nos bastidores, com a secretária de Estado Adjunta, Mariana Vieira da Silva, que também no PS faz de braço direito do secretário-geral. “Vou de computador ou de caderno?”, pergunta Mariana quando, à saída para o almoço de sábado, precisa saber se o trabalho será mais minucioso ou apenas uma troca de ideias para alinhavar tópicos. Sai de caderno. Na companhia de Pedro Silva Pereira apenas acabarão por ser discutidos os temas a abordar este domingo, no encerramento do congresso. Fica acertado que falará para o futuro, com, pelo menos, sobre dois temas importantes: a relação com a Europa e as eleições autárquicas de 2017. “Será para o futuro. O passado já ficou resolvido no prometemos, cumprimos” [slogan inicial do congresso]. Tal como no “palavra dada é palavra honrada”, repetido por vários oradores.

Se o congresso foi um passeio no parque foi porque não teve contraditório. Ou teve pouco. Mas Costa estava preocupado em não perder um discurso em particular. “O Assis está quase a falar, tenho de ir para dentro”, diz no sábado à tarde quando, pelo sistema de senhas que foi instituído, percebeu que o seu crítico mais visível ia subir ao palco. Costa sabe que pareceria mal se não estivesse na mesa, onde esteve durante o dia quase todo, no momento em que o eurodeputado se apresentasse ao congresso.

Quando ainda não se tinham ouvido assobios (vieram com Assis, que apesar de tudo saiu do palco debaixo de palmas), Costa estava optimista. “[Isto] Claramente está a correr bem. Com os congressistas já sabia que ia correr bem e os críticos já tinham sido todos entrevistado...” Análise feita pelo secretário-geral que queria ouvir a legitimação da solução de Governo. Não que precisasse de perceber que o partido está com ele, não tem muitas dúvidas quando fala dos "mais de 91%" que o elegeram, que afinal foram 94%, mas porque passados seis meses de Governo, o congresso é um momento político. E a imagem conta. 

E para a encenação que é sempre uma reunião partidária,, o PS teve ajudas extra. Uma já comum. O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schülz, que já esteve várias vezes em Portugal, subiu ao palco para dizer o que Costa gostaria de ouvir, que “Portugal dá esperança aos socialistas de toda a Europa” e que é contra sanções ao país por causa do défice. Se Mário Soares falava de Mitterand como “mon ami”, António Costa tem um “ami” alemão. “T’as perdu un excellent débat avec… avec… Pacheco Pereira” (Perdeste um excelente debate com... com… Pacheco Pereira), diz Costa. “Ahh oui?” (Ah sim?), reage o dirigente europeu. “Sur le socialisme” (sobre o socialismo). Costa leva as palavras de Pacheco Pereira, no debate que abriu o congresso de sábado com a ex-bloquista Ana Drago, para a sala onde recebe os convidados. 

Há ainda um autarca 

Os dias de congresso não são dias normais. São dias de encontro político em que a governação fica presa pelo fio do telefone e suspensa no descanso do fim-de-semana. Para Costa são dias em que pode ter à mão de semear alguns dos membros do núcleo duro que não levou para o Executivo e que deixou na Câmara de Lisboa, por exemplo, e quando pode, mesmo que como provocação ou brincadeira, voltar a pressionar.

Seria estranho que num congresso do PS se falasse de cemitérios? Seria. Mas a realidade às vezes ultrapassa a ficção. É que António Costa sente-se envergonhado pelos cemitérios de Lisboa, desde os tempos de autarca, e não perde uma oportunidade para falar disso a Duarte Cordeiro, agora vice-presidente da autarquia lisboeta. A conversa até começa pelas obras da cidade, mas… 
Duarte Cordeiro: “Estava a ver que me ia falar dos cemitérios” (Deixa lançada para um dos assuntos da cidade que não esquece). 
António Costa: “Eu agora passo todos os dias à frente do de Benfica…”
Duarte Cordeiro: “Vai dizer que tem ervas”, diz bem disposto.
António Costa: “Não. Agora está tudo cheio de terra.”
Duarte Cordeiro: “Claro… Porque tirámos as ervas” 
António Costa: “Agora que ando pelo país todo, vejo muitos cemitérios e é uma vergonha”, diz a provocar o vereador. 
Duarte Cordeiro: “Ainda agora o dos Prazeres ganhou um prémio do Tripadvisor”, responde, provocando uma gargalhada a Costa.

Duarte Cordeiro é mais um do núcleo próximo que chega à sala de apoio de Costa na sexta-feira à noite. Estão lá Pedro Nuno Santos e Ana Catarina Mendes, que discutem a um canto da sala os últimos nomes das listas à Comissão Nacional, Marcos Perestrello, Carlos César, Francisco César, Mariana Vieira da Silva e Pedro Delgado Alves, mais a assessora de imprensa e três assistentes de Costa. Aquela hora foi o tempo mais longo que esteve longe dos olhares dos militantes do partido. Na sala de apoio ao congresso a conversa foi descontraída, dizem que não longe do que é habitual, mas há quem esteja a ver e Costa sabe que há assuntos que ficam em família. Apesar disso, faz o reparo.

O início do congresso atrasa-se. "Está tudo lá fora. As pessoas ainda não entraram", queixa-se Francisco César, ou "Chico", como é tratado entre os socialistas. "Quer entrar pelo meio ou pela lateral?", pergunta. "Pela lateral. Poupemo-nos ao ridículo", responde Costa, que, apesar de ter uma sala da FIL quase às moscas, não deixa de ver um lado positivo. Afinal, as televisões estão a abarrotar de socialistas. "Não enchemos a sala, mas enchemos as televisões, de tal forma que a Ana Catarina consegue estar em duas ao mesmo tempo", vai brincando ainda com comando na mão, ironizando com o facto de por estes dias ser quase mais importante o que passa no pequeno ecrã do que a audiência na sala.

Há quem atire com uma desculpa. É sexta-feira à noite, à hora de jantar a temperatura (talvez mais o mês) faz cheirar a Santos Populares. Deixa lançada. É o próprio líder do partido, ex-presidente da Câmara de Lisboa, que se deixa contagiar. "Se isto acabar cedo ainda vou assistir às marchas. Nunca vi no pavilhão [Atlântico]". 

Como autarca, durante os quase oito anos, nunca viu a competição de marchas populares que decorre nos fins-de-semana antes do desfile na Avenida da Liberdade. "Se fosse ver uma, tinha de ver todas", que isto da competição das marchas é tão ou mais competitivo do que o campeonato de futebol e o presidente de todos os lisboetas não pode aparecer só quando uma desfila porque pode significar que está a tomar partido. Desta vez era diferente. Para mal dos pecados dos seguranças, decidiu sair directo do palco do congresso para a porta do Pavilhão Atlântico.

Os críticos ainda dizem que tem "o síndrome do alcaide" dentro dele. Costa não parece ver como uma crítica e não perde uma oportunidade para meter o dedo nos problemas da cidade. Os anos de autarca da capital não estão assim tão longe e ali, no desfile das marchas, todos o conhecem.

“Hoje é um dia muito especial por termos aqui, pela primeira vez, o primeiro-ministro de Portugal, o doutor António Costa”, anuncia o speaker do evento. António Costa arregala os olhos, meio espantando meio contente, agradece e acena. Sente-se em casa.

É Lisboa que lhe corre nas veias. “Cada marcha tem elementos da sua freguesia”, explica. Na pista, desfilava Campolide que carregava um cenário com um carro da polícia e uma fachada de uma prisão. “É na freguesia que fica o Estabelecimento Prisional de Lisboa”, acrescenta, desfazendo dúvidas de que a mensagem da marcha poderia ter alguma outra conotação.

Passou quase uma hora num pavilhão a vibrar por cada marcha – "a marcha é linda" – a distribuir beijos e abraços, a bater palmas, a cantarolar, a falar com quem fala com ele. Também sabe que a rivalidade é grande e por isso ficou do desfile da última marcha. Hoje poderá ser o dia de ver outra ovação. É o usual nos encerramentos de congressos. Mas ontem, quem o fez foi outro António. 
 

O regresso de Vangelis

Foram dois minutos a falar ao congresso, duas horas a ouvir militantes e uns dez minutos lá fora, a sorrir e a falar com António Costa. António, o Guterres, foi à reunião dos socialistas recolher os aplausos para não voltar nos próximos anos. Ou pelo menos é desejo partilhado pelos dois socialistas. “Espero que ele esteja mais dez anos sem cá vir”, diz Costa ao PÚBLICO. O desejo é pela positiva: se Guterres for eleito secretário-geral da ONU, não poderá participar em reuniões partidárias, tal como não fez nos últimos 16 anos.

Só o líder do partido sabia que chegaria um convidado especial e era suposto que não falasse. Combinou com a secretária pessoal que António Guterres se sentaria na mesa de honra do congresso, entre os outros notáveis, como Manuel Alegre ou Ferro Rodrigues. Entrou pela porta de trás, recebido por Ana Catarina Mendes e pelo secretário nacional Luís Patrão, que foi chefe de gabinete de Guterres quando este era primeiro-ministro. Ficou atrás do pano, em silêncio, a ouvir Carlos César anunciar uma das pessoas das quais os socialistas “têm sempre saudades”. De mãos atrás das costas entrou ao som de Vangelis – a música que lhe serviu de banda sonora nos anos de líder – e o congresso levantou-se.

Guterres falou pouco. Não era para isso que lá estava. Estava para cumprimentar o amigo e marcar o ponto junto dos seus. Saiu duas horas depois, mas ainda teve tempo para uma curta conversa com António Costa na rua, quando este o acompanhou até ao carro. No fim, um “boa viagem”. Com os olhos na política, o desejo é para qual dos dois?

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