A escola pública não se defende por decreto
Ao contrário do que muitos insinuam, a generalidade das nossas escolas públicas funciona bem.
Infelizmente, porém, o Governo apanhou a boleia do provável fim dos contratos para regressar à oposição anacrónica entre a bondade do Estado e o pecado original dos privados, os partidos da esquerda aproveitaram a ocasião para fazer um velho ajuste de contas ideológico com uma ofensiva sobre os “interesses”, o PSD regressou aos seus devaneios da liberdade de escolha que deram o resultado que deram em países como a Suécia e as escolas privadas lançaram-se numa campanha de vitimização sem sentido nem proveito. No meio da barafunda, prevalece um astro feliz: o presidente da Fenprof. Há muito que o sultão dos professores do Estado não se sentia tão abençoado.
Quando se olha para as escolas públicas como múmias isoladas das dinâmicas do mundo pode-se estar a agir com bons propósitos, mas falha-se no essencial – verificar se elas cumprem de facto o que o país espera delas. O pior dano que se lhes pode causar é reduzi-las a um princípio ideológico consagrado na Constituição. Se as escolas públicas forem más, se os professores deixarem de ser zelosos com as suas funções e declinarem as suas enormes responsabilidades sociais, se o ensino e a integração dos alunos estiverem abaixo das expectativas, as escolas públicas estarão condenadas a definhar. Nenhuma família com o mínimo de recursos para pagar propinas no sistema privado hesitará um segundo em tirar de lá os seus filhos. Se a escola pública for má, ficará destinada a transformar-se num albergue de filhos de famílias com menores recursos, no qual a exigência e a integração social tenderão a baixar de nível.
Se a ideia de um país partido à imagem e semelhança da América Latina é um pesadelo, a defesa da escola pública tem de ser uma bandeira colectiva. Para que as escolas públicas continuem a ser o motor de integração social onde diferentes estratos da população (em termos culturais ou de rendimentos) se encontram, se relacionam e aprendem a conviver, é necessário que sejam capazes de competir com as privadas. Para que essa competição seja justa, o Estado tem de providenciar recursos necessários ao seu bom funcionamento. Tem de as proteger e dedicar-lhes atenção e investimento. Tem de saber as suas diferenças e cuidar das mais fracas – merece por isso elogio a decisão do Governo em acabar com os créditos horários que Nuno Crato tinha concedido às melhores. Tem se combater essa prática escandalosa de algumas privadas que inflacionam notas internas para permitir vantagens aos seus alunos no acesso á universidade. Mas tem também de aprovar critérios de exigência que garantam a qualidade do seu desempenho.
Quando o Ministério da Educação afirma que, perante um cenário de carência financeira, não faz sentido financiar numa mesma freguesia uma escola pública e uma escola privada, é difícil não lhe dar razão. Mas quando acrescenta que vai ser necessário fechar escolas privadas para proteger as públicas sem se preocupar com a qualidade do desempenho de umas e outras, está a burocratizar o conceito de escola pública e a criar um dogma que a prazo a pode comprometer. O maior erro do ministro não foi por isso dizer que não está disposto a pagar redundâncias na oferta escolar. O que é menos consensual na sua decisão é a ideia de que a escola pública tem de existir apenas porque é gerida pelo Estado.
Em Portugal, as privadas existem em número reduzido porque a rede pública tem sido capaz de competir com elas. Ao contrário do que muitos insinuam, a generalidade das nossas escolas públicas funciona bem. Em oposição ao que muitos sentenciam, a maioria esmagadora dos professores da rede pública é competente, é exigente e é empenhada. Os docentes que as dirigem fazem um bom trabalho. Por regra, a escola pública garante que todas as crianças e jovens, pobres ou ricas, de famílias normais ou desestruturadas, católicos ou muçulmanos dispõem de um lugar para se educarem e integrarem numa sociedade plural e livre. Esse bem precioso para um país decente deve ser estimado e defendido. Mas não é pela balela ideológica ou pela imposição constitucional que se chegará lá. É pela comparação que puder ser feita entre os seus resultados e os resultados das privadas. É uma estratégia que se faz pela positiva, não pela aversão aos legítimos interesses de empresas ou da Igreja.
Ainda que no essencial o Governo tenha razão em recusar o pagamento com dinheiro público de serviços que o público não carece, falhou no critério que vai determinar os contratos que vão perdurar e os que vão ser abolidos. Se numa determinada freguesia forem suspensos os acordos com boas escolas privadas para garantir a viabilidade de más escolas públicas, o Governo prestará um mau serviço ao interesse colectivo. Nenhuma família aceitará de bom-tom que os seus filhos sejam retirados de boas escolas para serem inscritos em escolas duvidosas. E terão toda a razão. Ao protestarem, estarão a lutar pelo seu interesse que é também o interesse público.
Se por acaso o Governo cair no fundamentalismo do dogma, a escola pública cairá numa perigosa sensação de irresponsabilidade e de inimputabilidade. É nessa atmosfera que sobrevive o sindicalismo de Mário Nogueira. Para ele, como para uma boa parte dos sindicalistas que o acompanham, a escola é um lugar onde há muito cuidado para carreiras, vínculos e diuturnidades e pouco espaço para a qualidade do ensino ou para os alunos. Nogueira e a Fenprof rejeitaram e rejeitarão qualquer comparação entre escolas públicas e privadas como recusa toda e qualquer medida que implique avaliação, hierarquia na gestão escolar, descentralização pela proximidade às autarquias, rankings ou o que quer que seja. Para ele, o mundo das escolas deve estar cristalizado numa ordem celestial cimentada com palavras de ordem e o beneplácito do poder político.
Como na saúde ou a assistência aos idosos, a educação pública está sob a ameaça dos cortes e dos interesses das corporações – alguns legítimos, outros nem tanto. O Estado não deve desviar os seus recursos financeiros para o sector privado, mas se e só se em causa houver garantia que a escola pública é capaz de prestar o serviço que a comunidade dela espera. Se falhar, bem pode o PS ou o Bloco vir com um bloco de princípios em sua defesa que a comunidade deixará de a apoiar. Para que isso não aconteça, os critérios a aplicar na próxima geração de contratos de associação deveriam incluir a ponderação da qualidade do serviço público prestado. Indo por aí, muitas escolas públicas sairão bem na fotografia. Outras nem tanto. Constatada a verdade, seria intolerável que o Estado protegesse a incompetência sob a égide dos bons princípios.