Um tratado comercial que não conquista corações
Abrir os mercados dos EUA à Europa e os da UE aos Estados Unidos era um sonho da Administração Obama que dificilmente se realizará. Os obstáculos culturais dos dois lados do Atlântico mostram-se ainda mais difíceis de abater do que as alfândegas.
Nem com o empurrão dado por Barack Obama com a recente visita à Alemanha e ao Reino Unido o Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP) parece ter hipóteses de descolar e de ser assinado até ao fim do ano – até Obama deixar a Casa Branca. Aliás, o mais provável é que este complicado tratado seja posto na prateleira durante bastante tempo, devido ao calendário eleitoral norte-americano e de vários países europeus em 2017. E também devido à sua grande complexidade.
Mais do que eliminar tarifas, o TTIP ambiciona tornar idênticos os regimes regulatórios dos mercados dos Estados Unidos e da União Europeia. Uma tarefa hercúlea – como poderia atestar quem se esforçou por definir quais os queijos europeus que podem utilizar a designação de origem, como o verdadeiro Camembert e os que apenas são “tipo” Camembert. A dificuldade terá sido menosprezada, em 2013, quando se iniciaram as negociações, com a esperança de obter um acordo até 2015.
Parecia mais fácil do que chegar a acordo entre os 150 parceiros da Organização Mundial do Comércio sobre como derrubar barreiras para facilitar as trocas internacionais. Mas as dificuldades têm-se multiplicado, com uma enorme resistência da sociedade civil na Europa e uma crescente impopularidade dos tratados de livre comércio dos dois lados do Atlântico: uma sondagem recente mostrava que só 18% dos americanos apoiam o TTIP, quando 53% lhe eram favoráveis. Na Alemanha, o país onde a mobilização tem sido maior contra o tratado, só 17% dos cidadãos estão a favor dele, quando há dois anos eram 55%.
As negociações não estão a avançar. França, aliás, fez saber que está disposta a dar um murro na mesa. “Jamais aceitaremos que sejam postos em causa os princípios essenciais para a nossa agricultura, a nossa cultura, para a reciprocidade de acesso aos mercados públicos”, disse o Presidente François Hollande. “É por isso que, nesta fase, a França diz ‘não'.”
Antes, já o secretário de Estado do Comércio francês, Matthias Fekl, tinha avisado que a paragem das negociações seria “a opção mais provável”, e tinha dado a entender que Paris podia bloquear o processo. “Não pode haver acordo sem a França, e ainda menos contra a França.” Em causa está o “espírito dos Estados Unidos” nas negociações, disse Fekl.
Todos os documentos das negociações são secretos – apenas são publicados resumos oficiais pela Comissão Europeia, que negoceia em nome da UE – e a falta de transparência é um dos pontos mais criticados. “A culpa não é só dos americanos. É também dos europeus. Perguntamos se é possível publicar aquilo que acordámos, e dizem-nos ‘não!’”, contou à revista Time o ministro da Economia alemão e vice-chanceler, Sigmar Gabriel.
Apesar de a chanceler Angela Merkel ser a principal defensora do TTIP na Europa – o seu país é o principal parceiro comercial dos EUA, ultrapassando a França pela primeira vez em 2015 –, o seu "vice" no Governo, que é de outro partido, também lançou avisos de que a negociação está à beira de falhar. Disse recusar-se a apoiar um texto que resume como um instrumento de propaganda “compre produtos americanos”, cita-o a AFP.
Tanto o pacote de 248 documentos revelados pela organização ambientalista Greenpeace esta semana como os políticos franceses e outros que falaram sobre o assunto dão a entender que há uma forte pressão de Washington sobre a Europa para se sujeitar às regras americanas em múltiplos sectores. E, além disso, a Comissão Europeia, que negoceia pela EU, não estará a montar grande resistência a essa pressão – pelo menos, os documentos não mostram isso.
Por exemplo, nos EUA são usados 82 pesticidas que são proibidos na UE. E 90% da soja, algodão e milho americano é geneticamente modificado – enquanto os países-membros da UE podem proibir a produção de produtos transgénicos. E os EUA querem incluir no tratado o direito das empresas a conhecer alterações à legislação dos países que possa interferir com os seus interesses comerciais – algo que, legitimamente, pode ser visto como uma interferência na soberania. Como chegar a um acordo para que produtos americanos e europeus possam circular sem barreiras dos dois lados do Atlântico?
Os EUA não querem sequer ouvir falar do princípio de precaução, que é muito caro à União Europeia – em que se fundamenta o afastamento do mercado dos produtos transgénicos, por exemplo. Por outro lado, os EUA também não estão dispostos a abrir os concursos da administração pública a empresas europeias – o seu princípio orientador é mesmo “comprar americano”. Tudo isto são dissensões demasiado profundas para resolver com mais algumas rondas de negociações até ao fim do ano.
E depois de Obama sair, o Presidente americano que se seguir não será tão favorável a estabelecer tratados de comércio internacional. Donald Trump tem-se manifestado fogosamente contra, e até Hillary Clinton, que enquanto secretária de Estado de Obama foi uma entusiasta defensora desta sua política, se tem tornado crítica – aproximando-se das posições do seu concorrente democrático Bernie Sanders.
Mas também na Europa as condições não estarão de feição para assinar tratados tão polémicos. Sem falar no “Brexit” – em Junho veremos o resultado do referendo britânico sobre a continuação do Reino Unido na União Europeia –, tanto a França como a Alemanha enfrentam eleições ao mais alto nível em 2017. Presidenciais em França às quais Hollande ainda não revelou se se recandidatará (as sondagens dizem que não tem quaisquer hipóteses de ser reeleito) e legislativas na Alemanha.