Como foi isto acontecer?

Situação típica em Portugal: enquanto as coisas podem ser alteradas e até detidas, enterrá-las a golpes de "ninguém se interessa", "é demasiado complicado para explicar", "está toda a gente a falar de outra coisa". Quando elas já se tornaram irreversíveis, encontrar aí tema para a nossa vitimização, propondo planos para voltar com o tempo atrás. De repente, já toda a gente se sente especialista e sempre se enchem mais umas horas de comentário.

Foi o que aconteceu com o euro. Foi o que aconteceu com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio. E é o que está a acontecer com o tratado transatlântico conhecido por TTIP (ou "Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento"). Na Alemanha fazem-se manifestações a apelar à sua rejeição. No Reino Unido é assunto de primeira página. Em Portugal um ou outro bravo jornalista lá consegue levar o assunto a uma página interior na secção de economia.

Nem todos os casos são equivalentes. Portugal poderia ter evitado entrar no euro, pelo menos naquele momento ou naquelas condições, mas não teria certamente conseguido impedir a China de chegar à globalização. Mas poderia sempre ter-se preparado melhor. E, no caso do TTIP, pode pelo menos exigir mais informação e melhor debate.

Ficou mais fácil saber o que está em causa a partir do momento em que a Greenpeace libertou dezenas de documentos das negociações secretas entre UE e EUA. Se os EUA ganharem nas suas exigências, acabam os subsídios para agricultores, baixam as regras de proteção laboral, acaba o princípio da precaução em matéria ambiental e talvez fique limitado o nosso regime de proteção de dados pessoais. Parece suficiente para nos despertar o interesse? Pelos vistos, não.

***

Nos mesmos documentos secretos agora vindos a público encontram-se também as exigências europeias, umas boas e outras más, que vão desde uma exceção para o setor do audiovisual e da cultura até à inclusão dos sistemas de contratação pública. O texto ainda pode melhorar, piorar ou não passar disto mesmo. O que é certo é que nós, — como trabalhadores, consumidores, empresários ou seres saudáveis — seremos todos afetados se as regras escolhidas para um mercado de 800 milhões de pessoas forem mesmo estas.

E aí bate outro ponto — que não é português mas europeu. Por que tinham de ser estas negociações secretas? Na altura em que foram votadas no Parlamento Europeu foi derrotada pelos grandes partidos uma proposta para que o resultado das rondas de negociação fosse sempre público. Isto teria retirado poder aos lóbis, nomeadamente do setor automóvel, que parecem ser os grandes beneficiários daquilo que está em cima da mesa.

Manter tudo secreto e complexo sempre foi um vício da Comissão Europeia, apoiada pelos governos nacionais da UE — e depois espantam-se que as pessoas se indignem. Não estimular o interesse público nem ajudar a formar o debate foi sempre o vicio das elites portuguesas — e depois espantam-se que o país esteja mal preparado.

Daqui a uns anos diremos todos: como foi isto acontecer?

Sugerir correcção
Comentar