Os Dias da Música vão viajar pelo mundo (quase) como Júlio Verne

À décima edição, a festa do CCB faz-se a partir da viagem de Phileas Fogg e propõe mais um encontro de culturas. E com um músico de jazz que está entre os preferidos do novo presidente. De 22 a 24 de Abril.

Foto
Os concertos dos Dias da Música têm tido taxas de ocupação a rondar os 80% NUNO FERREIRA SANTOS

Há um momento da programação dos Dias da Música, apresentada esta segunda-feira, que o novo presidente do Centro Cultural de Belém (CCB) aguarda com especial expectativa – o do primeiro concerto (dará dois) do norte-americano James “Blood” Ulmer. O músico de 76 anos, primeiro guitarrista a conquistar o baterista Art Blakey e o saxofonista Ornette Coleman, deixando-se depois influenciar pelo funk de Sly Stone e pelo rock de Jimi Hendrix, faz parte da colecção de vinis de Elísio Summavielle, que se define, em parte, como um “contrabaixista frustrado” e um “eterno apaixonado pelo jazz”.

Falando pela primeira vez à imprensa na qualidade de presidente do CCB, cargo que ocupa há apenas uma semana na sequência de um processo muito mediatizado que levou ao afastamento do seu antecessor, António Lamas, Summavielle fez questão de sublinhar a importância dos Dias da Música, uma “marca de sucesso”, na oferta cultural da casa, cuja programação até ao final de 2016 permanece por apresentar.

A habitual conferência em que a administração anuncia o que se poderá esperar das salas de espectáculo e dos espaços expositivos do CCB não aconteceu até aqui porque a tutela – primeiro a secretaria de Estado de Jorge Barreto Xavier, depois o Ministério da Cultura (MC) de João Soares  não aprovara ainda a programação proposta. Segundo o novo presidente, o MC deu o seu aval na passada sexta-feira, esperando-se a qualquer momento que chegue à equipa de Summavielle o papel que formaliza essa decisão. “Faremos a divulgação pública da programação em breve”, disse ao PÚBLICO, garantindo que “já se está a trabalhar para 2017”.

Para já, energias concentradas na festa que serão os Dias da Música, de 22 a 24 de Abril, com dezenas de concertos envolvendo 1.700 músicos e juntando compositores tão diversos como Debussy, Falla, Gershwin, Bach, Purcell, Sibelius e Liszt, a portugueses como Sérgio Azevedo, Luís de Freitas Branco e Miguel Azguime, e à música e à poesia de tradição oriental.

O tema de 2016 – ano da décima edição desta iniciativa que veio substituir a Festa da Música – celebra um clássico de Júlio Verne em que os heróis eram Phileas Fogg e o seu fiel Passepartout, A Volta ao Mundo em 80 Dias, de 1873. Propondo uma Volta ao Mundo em 80 Concertos, os Dias da Música trarão, garante Miguel Leal Coelho, administrador do CCB desde 2010 e director do seu centro de espectáculos há 23 anos, incursões por outras geografias e culturas, tornando mais evidente “a influência que cada civilização teve na música ocidental e vice-versa”.

Com um orçamento de 500 mil euros – 70 mil dos quais assegurados pela Câmara Municipal de Lisboa e 40 mil pela Caixa Geral de Depósitos , os Dias da Música voltam a contar este ano com parceiros como a Metropolitana de Lisboa, a Gulbenkian, a Orquestra de Câmara Portuguesa, a Orquestra XXI ou o Opart (organismo que gere o Teatro Nacional de São Carlos, com o seu coro e orquestra, e a Companhia Nacional de Bailado), peças essenciais ao funcionamento da festa, reconheceu Leal Coelho.

A Oriente

André Cunha Leal, programador desta festa do CCB, partiu para a edição de 2016 pronto a traduzir em música uma viagem que começou por ser literária, num tempo em que a Europa voltava a trazer até si outras culturas e influências através das grandes exposições internacionais, que misturavam os avanços tecnológicos e uma “redescoberta” do mundo.

É nessa segunda metade do século XIX que a música surge “em toda a sua força” para “retratar os grandes momentos de encontro entre os povos”, explicou aos jornalistas, dando como exemplo duas obras de Giuseppe Verdi – Hino das Nações (1862) e Don Carlos (1889) – e a influência que o gamelão javanês, um complexo instrumento colectivo das ilhas indonésias de Java e Bali, teve em toda uma geração de compositores, a começar por Claude Debussy. Uma das peças do compositor francês que melhor reflecte esta contaminação do Oriente na música europeia  Quarteto de cordas em Sol menor – pode ser ouvida no sábado, 23 de Abril. “É das primeiras obras a serem classificadas como perigosamente expressionistas”, lembrou o programador.

E se falamos de música como território de encontro, não há como fugir a duas propostas da programação: o Duo Amal, formado por dois pianistas, Yaron Kohlberg e Bishara Haroni, um israelita e o outro palestiniano; e Uma tarde no jardim persa, concerto em que três instrumentistas fundem música do Irão com instrumentos clássicos e tradicionais, tendo a poesia como um dos fios condutores.

Na música portuguesa, Cunha Leal chamou a atenção para várias propostas, do Concerto para piano de Sérgio Azevedo  uma encomenda de 2010 do próprio CCB, associado num mesmo programa a El Amor Brujo, do espanhol Manuel de Falla, num concerto que junta o pianista António Rosado à orquestra Metropolitana de Lisboa sob a direcção de Peter Tilling , ao guitarrista Pedro Jóia, passando pela Suite Alentejana de Luís de Freitas Branco e pelo Rondó da Carpideira, um concerto pré-inaugural, no Cinema São Jorge (21 de Abril, às 21h30), que presta homenagem ao etnomusicólogo Michel Giacometti, com concepção visual de Gonçalo Tarquínio e improvisação dos músicos Mário Marques (saxofonista) e Daniel Bernardes (pianista). Será, garante o programador, um concerto “comovente” em que o público português reencontrará muitas das suas sonoridades – a recolha de música tradicional de Giacometti trará esse elemento de identificação – e se cruzará com “um jazz muito português”.

O público mais novo terá, como é habitual, toda uma programação dedicada, incluindo oficinas que misturam arquitectura e música, tendo A Volta ao Mundo em 80 Dias como cenário, mini-concertos de 20 minutos em que os intérpretes respondem a perguntas, e cantigas de embalar do mundo inteiro.

Ao todo a programação, que se pode conhecer em detalhe no site do CCB, terá disponíveis 30.500 bilhetes entre os quatro e os 11 euros. Desses, 10% foram já vendidos, disse aos jornalistas a nova administradora, Isabel Cordeiro (nomeada em substituição de Daniel Vaz Silva, que fora uma escolha de António Lamas para o anterior conselho de administração).

Momentos antes, Elísio Summavielle, que garantira já que a nova equipa na administração vai trabalhar para que o CCB “possa reflectir o que de melhor se faz neste país na arte e na criação”, dissera que nesta edição são esperadas 20 mil pessoas. De notar que, em média, explicou Miguel Leal Coelho, administrador até aqui responsável pela programação, cada pessoa compra bilhetes para mais do que um concerto. Mostram os números que a taxa de ocupação dos Dias da Música tem rondado os 80%, chegando quase aos 90% no ano passado, edição que tinha por tema o cinema e que viu 35 dos seus concertos esgotados.

Sugerir correcção
Comentar