A politização da Comissão e a “vingança” de Erdogan
De vez em quando a Turquia lembra-se de que é membro da NATO. Quando lhe convém.
1. Antonio Vitorino costumava dizer, quando se debatia a última reforma dos tratados, que não era boa ideia tentar “politizar” a Comissão, um órgão de características próprias e únicas que foi sempre fundamental para encontrar um consenso no meio da diversidade europeia. Na altura a questão da legitimidade democrática da União Europeia (que se designava por défice democrático) era um tema central dos debates preparatórios da Constituição e reflectia uma visão de crescente integração europeia. No resultado final da reforma (o Tratado de Lisboa), o Parlamento ganhava novos poderes (de co-decisão, nomeadamente), o Conselho Europeu reforçava o seu papel de liderança política, a Comissão, mantendo embora o poder de iniciativa legislativa, passaria a reflectir as preferências políticas dos europeus, expressas nas eleições para o PE e na composição do próprio Conselho. Hoje, é fácil de verificar que Vitorino tinha razão. A União foi em sentido contrário: governamentalizou-se, concentrando o verdadeiro poder no Conselho Europeu e no Eurogrupo, onde há países que mandam muito mais do que outros. A Comissão foi perdendo credibilidade, ao falhar a sua função primordial: garantir a procura do “bem comum”. A “politização” acabou por ferir a sua legitimidade. Jean-Claude Juncker foi escolhido porque era membro do Partido Popular Europeu que, por sua vez, ganhou as eleições europeias de 2014. Os comissários enviados pelos governos tinham de merecer a sua aprovação, é verdade, mas a sua margem de manobra era bastante limitada. Hoje, depara-se com um colégio de comissários onde a maioria apenas pretende defender as decisões dos respectivos governos nacionais. É verdade que os comissários levavam sempre na bagagem a forma como os seus países viam os seus interesses. Mas isso era até uma vantagem para encontrar consensos entre a diversidade europeia.
Vimos esta mudança ao vivo e a cores na forma como a Comissão actuou na avaliação do draft do Orçamento português para 2016. Portugal teve de enfrentar uma “barreira” política quase intransponível e predisposta a fazer vergar um governo cuja composição não agradava ao PPE e aos seus comissários. A começar pelo alemão, cuja intransigência foi de tal ordem que acabou por ser desculpada pelo facto de estar a participar na reunião através de videoconferência. Em alguns nórdicos, sempre furiosamente contra o Sul, o antigo primeiro-ministro finlandês Jyrki Katainan cumpriu o seu habitual papel de ser mais alemão do que os alemães. Os comissários de Leste foram fiéis ao seu comportamento habitual: se tiveram de fazer duros sacrifícios para aderir à União e ao euro, que os outros também os façam. Jean-Claude Juncker, que teve de gerir este debate, foi ele próprio alvo das pressões do PPE do qual faz parte. Como aconteceu em relação à Grécia, a única abertura veio do comissário francês, Pierre Moscovici. Podemos sempre dizer que esta divisão tem a ver com a ortodoxia orçamental e não com a cor política. O presidente do Eurogrupo pertence ao Partido Trabalhista holandês e não é, por isso, mais flexível. Mas as divisões parecem hoje ir mais fundo do que isso. O PPE, confrontado com surpresas eleitorais mais do que previsíveis perante o rolo compressor da austeridade, parece disposto a evitar o contágio. Do que eles não gostam em Portugal não é apenas a redução da dose da austeridade. É sobretudo quem a faz. Temem uma reedição portuguesa em Madrid. Como já foi dito e redito, o Governo português negociou bem, nesta guerra que está muito longe do fim. O semestre europeu inclui o chamado Procedimento dos Desequilíbrios Macroeconómicos que medem o avanço das reformas destinadas, por exemplo, à correcção dos défices e dos excedentes externos de cada país ou ao excessivo endividamento, que podem ir até ao “Procedimento por Desequilíbrio Excessivo”, com as respectivas penalizações. Vamos ver o que acontece.
2. Entretanto, para Angela Merkel, o problema número um já não é o euro mas a crise dos refugiados. A cimeira da próxima segunda-feira com a Turquia, que é o pilar da sua estratégia, é decisiva. Para bem da Europa, a política de braços abertos da chanceler contém o que é essencial numa resposta comum. Para mal dela própria, os alemães não concordam, os seus rivais erguem a cabeça e os seus parceiros não estão a colaborar, escancarando à luz do dia divisões que parecem cada vez mais profundas. Aqui, a culpa é dos governos e não da Comissão, que tem feito diligentemente o seu trabalho com propostas sensatas. A Áustria diz que não é a “sala de espera da Alemanha”, a Grécia, tratada pelos parceiros com uma arrogância inaudita (mais uma vez, além de Portugal, foi a chanceler que a defendeu), diz que não pode acarretar sozinha com o fardo dos refugiados. A França mantém-se silenciosa. Os nórdicos começam a deixar cair a sua máscara de tolerância. A Itália apoia a Alemanha, porque, tal como a Suécia e a Grécia, sofrem directamente na pele uma vaga humana com a qual não podem lidar sozinhas.
Merkel quer um compromisso firme com Ancara na segunda-feira e está disposta a pagar caro por ele, politica e financeiramente, desde que os seus parceiros também estejam. Foi a Alemanha, sob a sua liderança (apoiada pela França de Sarkozy) que travou as negociações de adesão com a Turquia, propondo uma “parceria especial”. O seu antecessor, Gerhard Schroeder e o Presidente Chirac defenderam a posição contrária. A mudança teve obviamente fortes repercussões na Turquia, onde a chegada ao poder dos islamistas moderados de Recep Erdogan, em 2002, com uma opção claramente europeia e a disposição de cumprir os critérios políticos necessários, entre os quais a democracia e a protecção das minorias. Foi o que aconteceu durante algum tempo. O recuo europeu traduziu-se numa elevada descrença da opinião pública turca na Europa. As sucessivas vitórias de Erdogan acabaram por revelar um líder autoritário e radical, que não quer pagar o preço da sua aproximação à Europa, embora a adesão continue a ser a linha oficial de Ancara.
A Turquia está hoje a braços com uma crise regional profunda, despoletada pela guerra na Síria, que pôs fim à sua política de “zero conflitos” com os vizinhos, mas que não deu ainda lugar à uma política externa consistente. De vez em quando lembra-se que é membro da NATO, mas só quando lhe convém. Parece agora disposto agora a aceitar a oportunidade que a mesma Merkel que lhe barrou o caminho lhe oferece, com dinheiro (muito), dispensa de vistos, abertura de mais capítulos nas negociações, que estão há muito congeladas. Muita gente, antes da deriva autoritária de Ancara, chamou a atenção para o papel estratégico da Turquia numa região de confluência difícil entre a Europa e o mundo islâmico. Berlim descobriu agora esta importância. A Turquia é a aposta mais forte da chanceler para conter o fluxo migratório que continua a chegar à Grécia. Quer convencer Ancara a reter os refugiados da Síria, permitindo que a distinção entre os que fogem da guerra e os imigrantes económicos seja feita no seu território. Amanhã veremos se os líderes europeus seguem a vontade de Berlim e se entendem sobre uma agenda comum. Não será, no entanto, agradável recorrer a um Governo que todos os dias comete mais um atentado à liberdade de imprensa. O que é irónico é que o futuro de Schengen esteja hoje nas mãos de Erdogan. Ou talvez nem seja. O autoritarismo também tomou conta de alguns países de Leste membros da União, sem que os seus parceiros se tenham empenhado muito em fazê-los voltar aos valores democráticos.