A noite em que Trump e Clinton chocaram de frente com a realidade

Senador do Texas conquistou mais delegados no Iowa entre os Republicanos, deixando Donald Trump aquém das suas promessas. No lado do Partido Democrata, até houve decisões por moeda ao ar.

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Ted Cruz ganhou o caucus republicano no Iowa REUTERS/Jim Young
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Trump ficou aquém das expectativas mas também não é mentira que não ficou nada mal para quem raramente se misturou com os exigentes eleitores do Iowa Jim WATSON/Reuters
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Hillary Clinton recolheu apenas mais dois delegados do que Sanders REUTERS/Adrees Latif
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Bernie Sanders está em contínuo crescimento REUTERS/Rick Wilking

Há pouco mais de dois anos, em Dezembro de 2013, Donald Trump partilhava no Twitter e no Facebook uma citação atribuída a uma das maiores lendas do golfe, Walter Hagen – uma daquelas frases certamente proferida antes e depois por milhões de pessoas em todo o mundo: "Ninguém se lembra de quem terminou em segundo." Sem surpresas, e com uma indisfarçável dose de prazer, muitos dos seus opositores desenterraram aquela citação na manhã desta terça-feira, para agravar a ressaca do magnata do imobiliário, depois de a votação no estado do Iowa ter colocado o senador Ted Cruz no topo dos candidatos à Casa Branca no lado do Partido Republicano.

Ao contrário do que acontece na Europa, as primárias para a escolha dos candidatos que vão ser os representantes do Partido Republicano e do Partido Democrata nas eleições para a Presidência dos Estados Unidos nunca têm apenas uma, duas ou mesmo três leituras – há tantas equações possíveis que é fácil falhar completamente uma previsão, por mais cautelosa que ela seja.

O caso é ainda mais complicado quando se trata do Iowa, que tem uma base eleitoral muito conservadora entre os republicanos e muito liberal entre os democratas, e é o primeiro estado a ir a votos, ainda por cima através de um sistema de assembleias – os já famosos caucus – que premeia quem mais tempo passa no terreno, e não nas televisões ou no Twitter e no Facebook.

Sim, é verdade que Donald Trump ficou muito aquém das expectativas que as sondagens e a sua característica fanfarronice antecipavam, mas também não é mentira que não ficou nada mal para quem raramente se misturou com os exigentes eleitores do Iowa e gastou tanto dinheiro em estudos sobre o perfil dos seus potenciais apoiantes como em chapéus com o slogan "Make America Great Again".

Maior afluência premeia Cruz e Sanders
Tal como se antevia, a afluência às assembleias no Iowa foi superior ao que é habitual nesta fase das eleições para a Presidência – no lado do Partido Republicano, os candidatos e os seus apoiantes no terreno conseguiram convencer 186.874 eleitores a sair de casa por volta das sete da noite de segunda-feira sob a ameaça de uma tempestade de neve, um número 50% acima do registado em 2012; no lado do Partido Democrata, o número foi um pouco inferior, 171.109, muito abaixo dos 239.000 que participaram nos caucus de 2008, quando a lista de candidatos foi muito mais diversificada do que este ano e incluia nomes como Barack Obama, Hillary Clinton e Joe Biden (em 2012 apareceram apenas 25.000 eleitores, mas Obama concorreu sem opositores, o que é habitual quando um Presidente se recandidata com popularidade suficiente para conquistar um segundo mandato).

Mas a grande surpresa da noite foi que a maior afluência registada no Partido Republicano não jogou a favor de Donald Trump, o autoproclamado porta-voz dos eleitores que estão fartos dos políticos profissionais e que admitiam votar pela primeira vez este ano. E é aqui que as análises sobre vencedores e vencidos encontram o seu primeiro obstáculo.

O senador Ted Cruz, que andou quase sempre atrás de Donald Trump nas sondagens no Iowa, conseguiu segurar grande parte dos votos dos evangélicos, um dos grupos mais importantes nas eleições no Iowa – foi a recompensa por ter corrido o estado de lés-a-lés durante meses a fio, tentando convencer indecisos em todos os 99 condados.

Este ano, pelo menos dois terços dos evangélicos foram votar (um novo recorde), e um terço deles apoiaram Ted Cruz, que vêem como o "verdadeiro conservador", um homem que respeita os valores religiosos, familiares e sobre o aborto em que eles se revêem. Os restantes dividiram-se entre Donald Trump, o senador Marco Rubio e o antigo neurocirurgião Ben Carson, e enviaram um sinal aos evangélicos de outros estados – o candidato deles é Ted Cruz. Este sinal sai reforçado com o anúncio da desistência de Mike Huckabee, um antigo governador do Arkansas e pastor da Igreja Baptista que venceu os caucus no Iowa em 2008 e que desta vez não foi além de 1,79%.

"Glória a Deus", disse Cruz aos seus apoiantes. "Esta foi a vitória das bases. Esta foi a vitória dos conservadores corajosos de todo o Iowa e da nossa grande nação."

Donald Trump fo unanimemente declarado o grande derrotado da noite, mas essa conclusão só pode ser tirada à luz da fanfarronice que ele foi alimentando durante a campanha, uma estratégia confirmada na última mensagem que deixou no Twitter antes da noite eleitoral: "Tudo começa hoje – VAMOS FINALMENTE RECONQUISTAR O NOSSO PAÍS E TORNAR A AMÉRICA GRANDIOSA OUTRA VEZ" (as maiúsculas estão no original). Mas o candidato acabou por transformar a derrota numa vitória, apontando já para uma possível mudança de estratégia na campanha: "Passei muito pouco tempo no Iowa, porque me disseram que não iria conseguir ter um bom resultado – apenas uma pequena fracção de Cruz e de Rubio. Terminei num forte segundo lugar. Grande honra."

Trump será agora a única pessoa no mundo que se lembra dos que ficam em segundo lugar, mas as primárias da próxima semana no estado do New Hampshire – menos dado a assuntos religiosos e onde o contacto cara a cara não é tão determinante como no Iowa (por ser uma eleição semelhante às que se realizam em Portugal, ao longo dia, rápida e de forma secreta) – pode dar-lhe tempo para recuperar o fôlego perdido. Ainda não saíram sondagens depois dos resultados no Iowa, mas na segunda-feira o magnata tinha uma vantagem média de 20 pontos percentuais no New Hampshire sobre o segundo, Ted Cruz.

Ascensão de Rubio
Para além de Ted Cruz, que conquistou 27,65% dos votos e oito delegados contra os 24,31% e sete delegados de Donald Trump, quem pode reclamar uma vitória sem nenhum "mas" é o senador da Florida, Marco Rubio, que garantiu um sólido 3.º lugar, muito perto dos dois primeiros – 23,2% e também sete delegados, como Trump. Com este resultado, os eleitores do Partido Republicano que não suportam a ideia de virem a ser representados por Cruz (o "homem de Deus") ou por Trump ("o populista embaraçoso"), podem olhar para Marco Rubio como o equilíbrio ideal entre os seus valores conservadores e uma necessária abertura a outros grupos mais chegados ao centro, para aumentarem as hipóteses de uma vitória nas eleições gerais contra o Partido Democrata. Se Rubio voltar a ter uma boa votação no New Hampshire, os outros candidatos que poderiam fazer esse papel, como Jeb Bush, John Kasich ou Chris Christie, poderão atirar a toalha ao chão sob pressão dos doadores e da máquina partidária, que também receia Ted Cruz e Donald Trump.

"Quando eu for nomeado, "vamos unir o partido e o movimento conservador", disse um confiante e visivelmente satisfeito Marco Rubio.

"Feel the Bern"
No lado do Partido Democrata também houve um vencedor sem nenhum "mas", apesar de ter ficado atrás de Hillary Clinton. Bernie Sanders, o veterano senador do Vermont de 74 anos, que se apresenta como a resposta aos que anseiam por mudanças mais abrangentes e mais rápidas do que as que foram implementadas por Barack Obama nos últimos oito anos, foi levado em ombros pelo eleitorado mais jovem e terminou a noite com um empate técnico – Clinton obteve 49,86% dos votos e 23 delegados, e Sanders respondeu com 49,57% e 21 delegados. A repartição dos votos entre ambos foi tal que o terceiro candidato, Martin O'Malley, disse adeus à campanha e deixou uma corrida a dois no Partido Democrata.

Apesar de o impacto no resultado final ter sido irrelevante, houve um episódio que ilustrou bem a materialização do slogan que tem acompanhado a candidatura de Bernie Sanders, indicando o seu contínuo crescimento como forte candidato – "Feel the Bern". Numa solução que os cidadãos europeus apenas conhecem daqueles momentos que antecedem um jogo de futebol, quando os capitães das equipas escolhem entre serem eles a dar o primeiro toque ou a terem preferência por um dos lados do campo, em pelo menos cinco assembleias a vitória de Hillary Clinton foi determinada por moeda ao ar – e sim, Clinton venceu todas as decisões.

O caso mais falado aconteceu numa das assembleias da cidade de Ames, quando os responsáveis pela contagem de eleitores repararam que 60 pessoas tinham saído da sala depois da contagem inicial. Dos 484 que eram esperados, apenas 424 se dividiram entre as campanhas de Clinton, Sanders e O'Malley, o que causou um problema relacionado com o método de distribuição de delegados: Clinton ficou com 240 apoiantes e quatro delegados; Sanders com 179 apoiantes e três delegados; e O'Malley com apenas cinco apoiantes, tendo sido afastado da contagem final. Ficou então por atribuir um sexto delegado, porque as contas não batiam certo – e foi esse delegado que foi atribuído a Hillary Clinton, de acordo com o segundo método de desempate seguido pelo estado do Iowa: a moeda ao ar.

Houve casos semelhantes em pelo menos outras quatro assembleias, mas os pouquíssimos delegados que estavam em causa fazem parte do grupo de vários milhares que irão mais tarde às convenções a nível dos condados, e por serem tão poucos não tiveram influência na distribuição dos delegados estaduais, os que realmente importam para as contas finais – 23 delegados para Hillary Clinton e 21 para Bernie Sanders.

Apesar de continuar a ser vista como a favorita à nomeação pelo Partido Democrata, Clinton deverá sofrer um novo revés na próxima semana, nas primárias no New Hampshire, um estado mais liberal e onde o "socialista democrata" Bernie Sanders chega a ter 30 pontos de vantagem nas sondagens – depois disso chegam os estados do Sul, onde a campanha de Hillary Clinton espera recuperar o caminho para a vitória final com o apoio das minorias.

Depois do trauma que foi a derrota contra Barack Obama nas primárias de 2008, Hillary Clinton voltou agora a chocar de frente com a realidade – a de que a corrida poderá ser muito mais difícil do que as sondagens indicavam há poucos meses. Dirigindo-se aos seus apoiantes, Clinton disse que recebeu os resultados finais no Iowa "com grande alívio" – mesmo que Hillary Clinton confirme o seu favoritismo a longo prazo, se alguém dissesse aos apoiantes de Bernie Sanders que iriam ouvir aquelas palavras no Iowa, quando o senador apresentou a candidatura, em Maio do ano passado, muitos deles teriam esboçado um sorriso.

"Há nove meses, viemos a este estado maravilhoso e não tínhamos qualquer organização política, não tínhamos dinheiro, não tínhamos um nome reconhecível e desafiámos a mais poderosa organização política dos Estados Unidos", disse Sanders. "Esta noite significa um magnífico ponto de partida para a campanha nacional. Mostrou ao povo americano que esta é uma campanha para ganhar."

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