No tabuleiro de Kim Jong-un a China parece valer cada vez menos
A amizade entre a China e a Coreia do Norte já conheceu dias melhores. Mas as atenções continuam viradas para Pequim, quando se trata de conter as ambições nucleares do regime de Pyongyang.
No dia de Ano Novo, Kim Jong-un fez o seu habitual discurso anual, usando os óculos de massa preta e hastes grossas que o tornam ainda mais parecido com o avô e fundador da nação, Kim Il-sung. Quem procurasse nas suas palavras os indícios de que estaria a ser preparado um ensaio nuclear dificilmente os encontraria. É verdade que o líder norte-coreano declarou que o país estava pronto para a guerra, caso fosse provocado por “invasores” estrangeiros e “provocadores”. “Se nos tocarem ainda que levemente, não seremos piedosos…”, avisou. Mas nada disse sobre armas atómicas ou mísseis balísticos, ao contrário do que acontecera poucas semanas antes. A interpretação feita no dia 1 de Janeiro pela agência Associated Press era a de que o discurso procurou evitar referências que iriam irritar a China, o seu mais poderoso parceiro, e destinava-se sobretudo a dourar a imagem do líder junto da elite da Coreia do Norte.
Foi com um tom solene que esta quarta-feira a televisão estatal anunciou a detonação “muito bem sucedida” de uma bomba de hidrogénio. A notícia gerou reacções firmes em vários pontos do mundo – para além de cepticismo por parte de vários especialistas – e terá deixado o Governo chinês particularmente inquieto – até porque não recebeu qualquer aviso prévio de que este ensaio ia acontecer. Chineses que habitam perto da fronteira com o país vizinho, em zonas como Jilin, onde se sentiu o abalo sísmico provocado pelo ensaio, foram transferidos para outras áreas, avançou a televisão chinesa.
Das várias interpretações que se podem agora fazer é seguro dizer que a influência de Pequim junto da Coreia do Norte, um dos países mais isolados do mundo, está enfraquecida.
A porta-voz do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros, Hua Chunying, manifestou a “firme oposição” ao ensaio e exortou Pyongyang “a retomar o seu compromisso de desnuclearização e abster-se de todas as acções que possam agravar a situação”, cita a AFP. Para além disso, o embaixador norte-coreano em Pequim foi convocado para ouvir um “protesto solene”.
O Governo chinês tem sido dos poucos aliados com que a Coreia do Norte pode contar: é o seu principal parceiro comercial, fornecedor de petróleo e gás e de metade da assistência estrangeira que recebe. Mas os últimos anos foram difíceis para as relações entre ambos, de tal forma que, até agora, Kim não se encontrou com o Presidente chinês, Xi Jinping, que tomou posse em 2013 – e que num gesto bastante simbólico visitou a Coreia do Sul, arqui-inimigo do Norte, em 2014.
O clima seria brevemente desanuviado em Outubro passado, quando o Governo chinês enviou um alto representante a uma parada militar em Pyongyang com uma missiva dirigida a Kim apresentando “os melhores cumprimentos” de Xi. Mas dois dias depois, a Coreia do Norte estava a declarar que tinha desenvolvido uma bomba de hidrogénio. A reacção da China foi imediatamente visível: uma girl's band norte-coreana, a Moranbong Band, que se preparava para actuar em Pequim, foi obrigada a voltar para casa horas antes do concerto começar.
As raparigas da Moranbong Band foram directamente escolhidas pelo próprio Kim Jong-un para fazer frente às populares bandas de K-pop do Sul. Com as suas minissaias e saltos altos, bateria e guitarras eléctricas, distinguem-se radicalmente dos habituais instrumentos (muito conservadores) de propaganda do regime. Mas em vez de subirem ao palco, para um concerto organizado só para convidados, as raparigas, vestidas com casacos e chapéus militares, apanharam o avião da Air Koryo de volta a casa.
Há um ano, num tom impaciente, o general chinês na reforma Wang Hongguang escrevia no Global Times: “Se a Coreia do Norte tem de se afundar, nem a China a salvará.” O jornal Le Monde, que esta quarta-feira recordou essa citação, refere ainda que “as extravagâncias do terceiro elemento da dinastia Kim são vistas como um fardo, numa altura em que o desenvolvimento das ambições estratégicas de Pequim, nomeadamente no mar da China, provocam fricções com os seus vizinhos asiáticos. E adianta que, apesar de a China tentar aplicar reformas económicas na Coreia do Norte seguindo o modelo do seu próprio processo, “Pyongyang tem-nas recebido como um desvio. O regime de Pyongyang, mais nacionalista do que socialista, desconfia da influência chinesa na sua economia”.
A confirmar-se que o regime norte-coreano conseguiu detonar a bomba de hidrogénio, não é de excluir que os países da região – em particular, o Japão e a Coreia do Sul – procurem aumentar também as suas capacidades militares, com ajuda dos Estados Unidos, algo que está longe de ser bem recebido por Pequim. “A China será muito sensível quanto a movimentos do Japão ou da Coreia do Sul que visem melhorar os seus mísseis de defesa”, comentou à Reuters Zhang Baohui, especialista em segurança nuclear da Lingnan University, em Hong Kong. “A Coreia do Norte apresenta [o teste] como uma questão de Estado, mas os estrategos chineses vêem-no como uma jogada contra a China para limitar o seu poder de dissuasão nuclear.”
É por isso que, para Xuan Dongri, director do Centro de Estudos do Nordeste Asiático da Universidade de Yanbian, no Nordeste chinês, o ensaio desta quarta-feira “pretendia enviar uma mensagem forte à China. A Coreia do Norte quer mais ajuda da China”, cita o Washington Post.
Há anos que o programa de armas nucleares da Coreia do Norte é usado para legitimar internamente o regime – já era assim quando Kim Jong-il, pai do actual líder, estava no poder. As conversações a seis (duas Coreias, EUA, Japão, Rússia e China) para pôr um fim ao programa falharam em 2009, com algumas acusações lançadas a Pequim de que não tinha exercido toda a sua influência junto de Pyongyang. Agora, Hua, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, voltou a referi-las como sendo “a única forma eficaz e prática de resolver o problema da Coreia do Norte”.
Resta saber o que será pior na opinião de Xi Jinping: ter uma imprevisível potência nuclear ao seu lado, ou apanhar com as ondas de choque de um colapso do regime de Pyongyang.