Mesmo sob a sombra turca, o sonho curdo avança a passo firme na Síria
A principal estratégia da Turquia de Erdogan para a guerra na Síria é atacar os curdos. Ao fazê-lo, Ancara ameaça os principais parceiros do Ocidente na luta ao Estado Islâmico e o único projecto político que ainda preserva os valores que levaram à revolução contra Assad.
Junho de 2015, conquista de Tal Abyad. Combatentes do Estado Islâmico (EI) batem em retirada da cidade fronteiriça ante o avanço de uma coligação de rebeldes sírios liderada e composta predominantemente por curdos. Fogem para Raqqa, a cidade que reivindicaram como sua capital, a menos de cem quilómetros para Sul. Passados dias apenas de terem tomado Palmira ao exército sírio, agora o palco mediático da sua guerra ao multiculturalismo, os jihadistas perdem uma das cidades mais importantes no Norte da Síria. Sem Tal Abyad, o EI fica apenas com um ponto de contacto com a Turquia e o exterior, em Jarabalus. Recep Tayyip Erdogan reage nos ares, de regresso a uma viagem ao Azerbaijão. “Não é bom sinal”, sentencia.
A reacção do Presidente turco resume aquilo que, na ausência de uma estratégia concertada, são as sensibilidades de Ancara em relação à guerra na Síria. Mais do que o EI ou outros grupos extremistas que germinam e engrossam com o avançar do conflito, a grande ameaça aos olho da Turquia está no projecto de autonomia curda. Se o resto do mundo viu a conquista de Tal Abyad como um avanço positivo sobre o grupo jihadista, Erdogan encarou-a como mais uma pedra na edificação de um Estado curdo às suas portas. “Isto pode levar à criação de uma estrutura que ameaça as nossas fronteiras”, disse aos jornalistas, no seu avião presidencial. “As pessoas têm que ter em conta as nossas sensibilidades neste tema.”
Erdogan não está errado. A conquista de Tal Abyad foi um passo importante na construção de um Estado curdo no Norte da Síria. Permitiu unir dois dos três cantões que compõem o que é hoje designado como Estado semiautónomo do Rojava, também conhecido como Curdistão sírio ou Curdistão Ocidental. O cantão de Kobani uniu-se ao de Jazira, a Leste, e, de uma estopada, o quasi Estado curdo passou a ter uma fronteira de 400 quilómetros com a Turquia quando, há apenas três anos, nem sequer existia. Posto de outra maneira: a grande minoria curda sem país, o quarto maior grupo étnico no Médio Oriente, governa agora territórios que vão do Irão a Kobani, passando pelo autónomo Curdistão iraquiano, que em tempos foi também vítima da obsessão de Erdogan contra a ideia da independência curda.
Os curdos na Síria monopolizam as atenções do Partido da Justiça e Desenvolvimento, o islamista AKP, de Erdogan, que deles faz depender a sua estratégia para a guerra civil de há quatro anos e meio. É em parte por sua causa que a Turquia se manteve fora do conflito durante tanto tempo e é também pensando neles que, em Julho, Ancara decidiu enfim abrir as suas bases aéreas no Sul do país aos aviões da coligação norte-americana contra o EI e começar ela própria a bombardear os jihadistas. Antes disso, aos turcos bastou-lhes assistir às sucessivas conquistas do Estado Islâmico no Norte da Síria, a quem lhes permitiram assentar livremente nas suas fronteiras e usá-las para se abastecer de contrabando, armas e combatentes. Na perspectiva do AKP, os jihadistas matavam dois coelhos de uma cajadada só: avançavam sobre o regime de Assad, velho inimigo de Ancara, esmagando pelo caminho as aspirações curdas.
Nunca isto foi tão evidente como na longa batalha por Kobani. A decisão de Erdogan em deixar a cidade de maioria curda à sua sorte durante um cerco mortífero de quase cinco meses pelo EI revelou toda a extensão do sentimento anticurdo no Governo. Por mais de um mês, aliás, o Presidente turco recusou-se a abrir a fronteira a outros combatentes curdos para que estes fossem auxiliar os soldados das Unidades de Protecção Popular, ou YPG, que combatiam, em alguns casos, a menos de um quilómetro dos postos de segurança da Turquia.
Só por pressão dos Estados Unidos é que Ancara permitiu o envio de reforços e mantimentos aos combatentes esgotados em Kobani, a quem escasseavam armas e material médico – não antes de morrerem 40 pessoas na Turquia em protestos contra a acção do Governo. Em Janeiro, em parte graças aos mais de 700 ataques aéreos da coligação norte-americana, o EI foi derrotado e bateu em retirada de Kobani. Morreram 400 combatentes curdos no cerco dos jihadistas. Kobani tornou-se na sua Estalinegrado.
A revolução do Rojava
Foi a maior vitória no terreno contra o EI e o início da coligação mais eficaz na batalha contra os jihadistas. Nenhuma outra força na Síria – nem o exército de Assad, que evita entrar em grandes confrontos com o Estado Islâmico, o Hezbollah libanês, a mando do Irão, ou até os incipientes grupos de rebeldes moderados – conseguiu vitórias tão decisivas contra os extremistas como os curdos. Erdogan e o seu partido viam os territórios do Rojava a expandir. Até que lhes impôs um travão.
Aos olhos turcos, não há distinção entre o EI e o PKK, o ilegalizado Partido dos Trabalhadores do Curdistão. A grande força mobilizadora do Estado do Rojava é o PYD, fundado em 2003 pelos líderes da causa curda na Turquia e edificado sobre os mesmos ditames de Abdullah Oçalan, o líder do movimento autonómico aprisisonado por Ancara. O PYD e o PKK são, em teoria, duas organizações diferentes, mas a sua proximidade trai esta distinção: é a cúpula política de Oçalan quem comanda as duas organizações e os seus braços armados confundem-se com frequência – os combatentes do PKK treinam nos mesmos campos iraquianos que as YPG e há centenas deles actualmente na Síria.
Quando Erdogan conseguiu uma abertura para declarar guerra sem distinção ao PKK e ao Estado Islâmico, em Julho, o PYD e as suas YPG foram também atingidos, embora indirectamente. Ancara anunciou que seria criada uma zona-tampão, no Norte da Síria, e que, com o apoio norte-americano, expulsaria de lá o EI para construir, em seu lugar, uma zona comandada por rebeldes moderados onde se poderiam instalar dezenas de milhares de refugiados. Esta suposta área protegida estende-se de Afrin (o terceiro cantão curdo) a Kobani e é, coincidentemente, o troço de terreno na mira dos curdos sírios para completar o seu projecto de autonomia.
O projecto para uma zona-tampão está parado e não é claro qual o entendimento entre turcos e norte-americanos. É lá que está Jarabalus, o último ponto de passagem para a Turquia ainda sob o poder do Estado Islâmico. Quando na quarta-feira as YPG tentaram atravessar o rio Eufrates e atacar posições dos jihadistas neste território, foram atingidos por caças turcos. “Isto é um aviso”, disse no mesmo dia o Presidente turco. “Estamos determinados em [combater] tudo o que nos ameace ao longo da fronteira da Síria, dentro ou fora dela.”
O homem forte da política turca justificou o seu ataque às YPG com acusações de que estas fizeram limpeza étnicas nas suas conquistas no Norte da Síria – embora lá tenha admitido a presença de jihadistas durante mais de um ano. As acusações de Erdogan são repetidas pela Amnistia Internacional mas desvalorizadas pelos curdos, que dizem que estes casos são pontuais e que o seu objectivo é construir um Estado secular, multicultural e diversificado. É o que se lê na sua Constituição, aprovada em Janeiro para os três cantões, o que dá estrutura jurídica para a auto-governo que foi avançando em Rojava desde 2012, altura em que Assad retirou quase por completo as suas tropas do Norte do país – o governante sírio e os curdos têm um acordo tácito de não-agressão. E é o que vários observadores dizem estar a acontecer no Rojava, onde 40% dos cargos políticos são desempenhados por mulheres e se multiplicaram dezenas de assembleias locais pelos três cantões, aparentemente justas e equilibradas.
A violência gerada nos locais de maioria curda na Turquia pela resposta assimétrica de Ancara aos ataques do PKK e pelo seu relativo isolamento na luta ao Estado Islãmico faz com que um futuro Governo turco tenha que reaquacionar a sua estratégia para a Síria. Na perspectiva de Erdogan, caso ele se mantenha a força política indisputável na Turquia, as razões para o fazer são ainda maiores. Os Estados Unidos, pressionados pela vontade de recuperar a iniciativa militar na Síria depois da entrada em cena da Rússia, ignoraram as preocupações do seu aliado da NATO e enviaram este mês 50 toneladas de armamento a uma coligação liderada pelas YPG. Washington quer evitar que os curdos se aliem a Moscovo e esta tendência pode intensificar-se no futuro. Se não pela geopolítica dos países intervencionistas, então pela preservação de um Estado curdo numa possível repartição do país. Caso isto aconteça, Rojava pode ser o único exemplo das promessas da Primavera Árabe que levaram à revolta contra Assad.