O melhor museu de arte contemporânea portuguesa está na Madeira
A premiada Casa das Mudas, o Centro de Artes imaginado por Paulo David para a Calheta, recebe desde o dia 8 em exposição permanente a colecção de arte contemporânea da Madeira. Ao mesmo tempo, altera o seu nome. Fica agora a chamar-se Mudas.
Na festa da inauguração, Miguel Albuquerque, o presidente do governo regional desta região autónoma, contava que Winston Churchill, em plena Segunda Guerra, tinha apresentado a certa altura um orçamento de emergência que não contemplava cortes na área da cultura. Questionado pela oposição sobre as razões deste facto, teria respondido que a guerra se fazia pela defesa da cultura antes de tudo o mais, e que por isso se havia sector onde o orçamento não devia sofrer, era justamente este. O tom de Albuquerque, como o dos demais membros do seu gabinete, era de optimismo. E, se ainda nao há certezas quanto ao orçamento destinado a este propósito, já se sabe que em breve abrira concurso para provimento de um director do museu
Na realidade, o museu em si já existe desde 1992, data em que abriu no Funchal, na seiscentista fortaleza de Sao Tiago. Embora ganhasse com a centralidade do lugar, o edifício não tinha condições para expor as cerca de 400 obras que constituem hoje o acervo de arte contemporânea da colecção. Esta, que abrange um arco temporal que se inicia na década de 60 e termina nos anos imediatemente seguintes à viragem do milénio, partiu de um núcleo inicial constituído pelos Prémios de Artes Plásticas Cidade do Funchal, atribuídos em 1966 e 1967, onde se destacavam já peças de Joaquim Rodrigo, António Areal, José Escada, Helena Almeida, Jorge Martins, Artur Rosa, Manuel Baptista e Nuno de Siqueira. A partir de 86, este primeiro núcleo da colecção esteve exposto na Quinta Magnólia, também muito perto do Funchal. A transferência para a Fortaleza de São Tiago, e a direcção então assumida por Francisco Clode de Sousa, marcaram também o início de uma política de compras constante e continuada, muitas vezes a partir de exposições individuais de artistas no próprio museu e em outras instituições do Funchal.
A partir da passagem do milénio as aquisições tornaram-se mais esporádicas, o que se reflecte nas cerca de 240 obras apresentadas na exposição inaugural do museu. Se as décadas de 60 a 90 estão bem representadas, de então para cá a selecção beneficiaria certamente de aquisições que reflectissem os novos actores da contemporaneidade em Portugal. Clode de Sousa, que exerce hoje as funções de director de serviços de museus e do património cultural, afirma que estão em curso negociações para que seja alocado ao Mudas um orçamento de aquisições consistente que lhe permita colmatar falhas mais evidentes. Eduardo Jesus, secretário regional da Economia, Turismo e Cultura, contrapõe por seu lado que o que é necessário é encontrar soluções para um museu pós-crise que não pode continuar a comprar obras de arte como era habitual antes de 2008. O que é certo é que esta é uma questão que implica a própria sobrevivência do museu no tecido cultural português de hoje.
Quanto à Casa das Mudas propriamente dita, ela foi inaugurada há praticamente dez anos no local onde uma casa senhorial antiga marcaria provavelmente o lugar de mudas de cavalos de diligência. Paulo David, o arquitecto responsável pela nova construção, pensou numa estrutura que acompanhasse o declive natural da enorme arriba que se eleva a centenas de metros sobre a vila da Calheta, a 35 km do Funchal. Há uma importância nítida que é dada ao sentido da visão em todo o edifício: não só ele é rasgado pontualmente por janelas que se abrem sobre a paisagem imponente, imbricando-a na própria apreciação das obras de arte, como há por todo o lado varandins, escadas e galerias que entrosam as diferentes salas umas nas outras. Um guache de Vieira da Silva, por exemplo, está numa dessas galerias que se sobrepõe à primeira sala do museu, a mesma onde se podem ver obras de Ângelo de Sousa, Rui Chafes, José Pedro Croft, António Areal, Jorge Martins, Eduardo Batarda e Casqueiro, estes últimos a protagonizar um dos momentos mais inesperados da montagem. Um pouco mais longe, uma escada que é necessário descer revela um fragmento de uma pintura de Xana que contrasta, com as suas formas coloridas e francas, com o branco uniforme das paredes.
A montagem define alguns núcleos que se adivinham sobretudo didácticos, já que os artistas hoje em dia preferem não se deixar limitar por nomes como "abstracção", "figuração", "não-figuração" e "retrato". Neste último núcleo, por exemplo, obras de Jorge Molder que poderão eventualmente entrar na categoria da auto-representação associam-se aos desenhos queimados de Pedro Gomes que apenas conceptualmente se aproximam deste género. Mais acima, nas abstracções, um desenho rigorosamente geométrico de Jorge Pinheiro surge lado a lado com uma peça de António Campos Rosado e de uma escultura de Rui Sanches. Ora, é sabido que estes artistas se interessaram por outras linguagens em fases mais recentes dos seus percursos.
Por outro lado, a montagem combina estes e outros nomes mais conhecidos da contemporaneidade com uma multiplicidade de artistas madeirenses que estão longe de destoar da tónica geral. A melhor surpresa surge com Amâncio Sousa, um autor de quem se mostram objectos criados na década de 60 ao gosto da linguagem pop da época. Quanto a Lourdes Castro, o núcleo numeroso, representativo e de grande qualidade de obras suas aqui presentes - algumas das quais emprestadas pela colecção Berardo - é, desde já, o melhor que se pode ver em Portugal neste momento desta grande artista madeirense.
E não só. De Calhau a Suzanne Themlitz, de Pedro Calapez a Valdez Cardoso ou Blaufuks - e é deste fotógrafo a imagem escolhida para o Mudas - , dos muitos desenhos de João Queiroz ao núcleo notável de Biberstein, de Patrícia Garrido a José Loureiro ou Álvaro Lapa, a exposição apresenta uma selecção de artistas e obras contemporâneos como não encontramos hoje em mais nenhum lugar em Portugal. A colecção do Museu do Chiado permanece uma incógnita; o CAM abdicou de expor a sua colecção de arte contemporânea; Serralves está desde sempre vocacionado para as exposições temporárias; e o Museu Berardo é por enquanto um museu internacional, antes das grandes decisões que terão que ser tomadas quanto ao seu futuro já no ano que vem. Resta, e bem, o Mudas, o primeiro passo de um novo tipo de turismo, mais culto e educado do que actualmente sucede, que todos os responsáveis querem para a Madeira. A grande qualidade da exposição inaugural garante desde já todos os trunfos para que este objectivo seja alcançado: é o melhor museu de arte contemporânea portuguesa que existe no país.
Luísa Soares de Oliveira, crítica de artes plásticas, viajou a convite do Governo Regional da Madeira