Como a Apple limpa o trabalho escravo da sua cadeia de fornecedores
As condições dos trabalhadores que fazem os telemóveis são muitas vezes piores do que eram no século XIX. Qualquer multinacional pode identificar facilmente onde está o risco de trabalho forçado na sua cadeia de fornecedores. E pode dar passos para o eliminar em cinco anos. É nisto que acredita o presidente de um grupo que faz a "limpeza" do trabalho escravo em empresas como a Apple e a HP, que já devolveram milhões aos trabalhadores.
Não é por acaso que este anúncio aparece. Faz parte de um esforço da Apple em limpar a imagem de uma empresa que tem milhões e milhões de lucros à custa da exploração dos seus trabalhadores. Em 2012, o jornal The New York Times publicava uma investigação em que revelava que empregados de uma fábrica na China que fornecia a Apple trabalhavam em condições desumanas.
A China não é o único país onde foram detectados problemas: na Malásia, em Taiwan e Singapura também, de acordo com a análise da Verité, uma organização não-governamental que faz auditorias e desenha planos para garantir o respeito pelos direitos humanos nas cadeias de fornecedores de multinacionais. O presidente da Verité, Dan Viederman, esteve em Londres, na conferência Trust Women, organizada pela Thomson Reuters Foundation (TRF) a 18 e 19 de Novembro, e foi lá que nos contou como fez a "limpeza" do trabalho forçado na cadeia de fornecimento da Apple na Malásia, Singapura e Taiwan.
Avisa: qualquer empresa que recorra a fornecedores que usem mão-de-obra estrangeira na sua cadeia corre o risco de ter trabalho forçado. Recentemente, a Verité publicou um relatório sobre a Malásia onde divulga que 32% dos 200 mil trabalhadores migrantes da indústria electrónica naquele país, um dos maiores produtores mundiais da indústria electrónica, está sob condições de trabalho forçado. Desses, 94% não tinham o seu passaporte. Estas empresas da Malásia fornecem gigantes como a Apple, Samsung e Sony. A Apple, por exemplo, tem 1,5 milhões de trabalhadores na cadeia de fornecedores, 18 mil na Malásia – e desses, quatro mil são migrantes, de acordo com The New York Times. Trabalha com 30 fábricas na Malásia, 18 delas foram auditadas no último ano.
Com a TRF, a Verité tem um projecto ao qual chamou "parceria para uma cadeia de fornecedores livre de escravatura", conta, em que a ideia é detectar os sítios onde há esse risco. Recolhem, analisam e partilham dados de diferentes fontes, numa parceria ainda com outra empresa de Silicon Valley, a Palantir. A Verité vai também ao terreno identificar quais os países e quais os sectores em risco, está a começar a mapear "as redes de recrutadores de trabalho que são uma peça chave na exploração laboral".
Uma das formas de escravatura moderna é a coacção através da dívida, a chamada servidão por dívida. A história típica é a de uma trabalhadora filipina, exemplifica Dan Viederman: tem qualificações, não arranjava trabalho no seu próprio país, falou com alguns recrutadores, pede um empréstimo de 3500 dólares para a viagem até Taiwan, onde iria trabalhar numa fábrica de electrónica. O que lhe acontece é o que acontece a milhares de pessoas: percebe que o que foi prometido não vai ser pago, e que o que vai ser pago é menos do que o salário mínimo, apenas 325 dólares por mês; desse ordenado, vai-lhe ser deduzida uma quantia de 190 dólares para pagar o empréstimo; depois deduzem-lhe outros 50 dólares pela casa, que afinal é partilhada com outros; ela, que pensava que ia trabalhar numa fábrica moderna, afinal trabalha dez horas por dia e depois desse expediente ainda é levada para outra fábrica, acabando por trabalhar 14 horas no total. Os recrutadores ficam-lhe com o passaporte; ela está ilegal e não consegue sair do país, nem tem dinheiro, e fica "numa condição de trabalho forçado".
Qual é o papel das cadeias de fornecimento no padrão típico de escravatura que descreveu?
As multinacionais não estão a produzir os seus produtos localmente. Muitos têm o seu acabamento na China e, por exemplo, alguns dos componentes vêm de Taiwan, Malásia, Singapura, Brasil… Em cada fábrica há trabalhadores que vêm de muitos sítios. A cadeia de fornecedores de uma empresa de telemóveis, por exemplo, é como uma rede que pode ter centenas de fábricas envolvidas na produção e essas fábricas podem ter trabalhadores vindos de dezenas de países. Este produto [mostra o telemóvel] tem milhares de mãos vindas de dezenas de sítios, feito de uma forma nada transparente. Como consumidores não temos ideia disto.
Há o exemplo da Apple que em 2012 esteve envolvida no escândalo na China.
É uma das poucas empresas que levou isto a sério e agiu de forma agressiva e eficaz. Não foi apenas a Apple, mas são todas as empresas que usem produtos electrónicos – telemóveis, computadores, etc. Estes produtos chegam-nos como manifestações de modernidade mas as condições dos trabalhadores que os produzem são muitas vezes piores do que eram no século XIX em qualquer fábrica. Porque a verdade é que as empresas que estão a vender estes produtos não têm grande conhecimento sobre o que se está a passar na sua cadeia de fornecedores.
E porquê?
Não têm apenas falta de conhecimento sobre o que se passa nesses locais, também desconhecem a forma como as pessoas chegam lá. Isso é muito complicado. Primeiro porque é preciso esforço para ter essa visão de conjunto, é preciso mobilizar alguma investigação, fazer uma auditoria social, no local de trabalho. É preciso ir aos locais, perceber o que está a acontecer. Nós achamos que faz parte da missão de uma empresa falar com os trabalhadores e tentar perceber o que se passa. Os trabalhadores contarão a verdade se lhes proporcionarem o ambiente seguro para o fazerem. Se for o representante de uma empresa de telemóveis, entrar numa fábrica e começar a perguntar ao gerente quais são as condições de trabalho, ele vai responder que está tudo bem. Tem que existir técnica com pessoas que estão numa situação vulnerável, apanhá-las no café ou na paragem de autocarro. Se se quiser mesmo saber o que se passa tem que se olhar para os registos de medidas de segurança e de saúde, para as folhas de pagamento. Com isso fica-se com a fotografia do que se está a passar. A fotografia pode não ser completa, mas pelo menos mostra alguns dos riscos.
Porque é que a Apple foi um bom exemplo em lidar com este problema?
Sabíamos que havia um problema sistémico, que nenhuma empresa de electrónica que comprasse produtos com origem na Malásia estava fora de risco. O escândalo da Apple deu-se mais com a China mas na verdade, na altura em que esse escândalo apareceu (em 2012), eles já estavam a fazer o trabalho connosco na Malásia, Singapura e Taiwan.
A Apple e os fornecedores têm sido subsidiados pelos trabalhadores para fazer recursos humanos, são os trabalhadores que têm suportado os custos de recrutamento. O que estamos a fazer com os fornecedores é restabelecer práticas de recursos humanos standard que eles devem adoptar. A Apple contratou, fomos lá, recolhemos a informação, fizemos uma estimativa, demos formação aos fornecedores neste novo código, ajudámos a criar novos planos de trabalho e sistemas de gestão que os ajude a tratar melhor os trabalhadores. As empresas têm um código de conduta para lidar com este tipo de problema que dirá: "nenhuma criança deverá estar envolvida no trabalho de produção ou nenhum trabalho forçado deverá ser envolvido".
O que a Apple fez foi definir, no seu código, esta servidão por dívida como forma de trabalho forçado – isto deve ter sido por volta de 2009/2010. Depois deu um treino a todos os fornecedores na Malásia, Taiwan e Singapura para garantir que ninguém que trabalhasse para eles tivesse pago ao recrutador mais do que o equivalente a um mês de salário – que incluía a despesa de transporte, etc (a Organização Mundial do Trabalho diz que ninguém deve pagar para ter um emprego, a Apple deu o limite de um mês). Voltámos para fazer uma avaliação e fizemos novo treino. A quem não cumpriu a Apple obrigou os fornecedores e os recrutadores a devolver a diferença monetária aos trabalhadores. Agora, em 2014, foi devolvido aos trabalhadores na cadeia de fornecedores da Apple nesses três países um total de 19,8 milhões de dólares desde 2008. Nós fomos verificar isso para ter a certeza que o dinheiro não lhes era retirado – há casos em que os recrutadores devolviam o dinheiro aos trabalhadores e depois iam confiscá-lo.
Fizeram esse trabalho para a Apple e para outras empresas?
Há duas semanas a HP anunciou uma política que ataca outros aspectos do mesmo problema. Muito frequentemente os trabalhadores não trabalham para a fábrica mas para o recrutador. Descobrimos na nossa investigação na Malásia que os trabalhadores continuam a trabalhar por muito tempo com a agência de recrutamento e não têm relação nenhuma com o empregador. Portanto o empregador nem sequer sabe muito sobre as suas condições de trabalho. A HP disse que não trabalha com fornecedores que não empreguem todos os seus trabalhadores. Isto é uma nova política que ninguém tinha articulado antes. Ao fazê-lo, eliminou um risco enorme. Disse também que iria restituir todos os pagamentos que os trabalhadores tinham feito, e que só trabalharia com fornecedores que garantissem que os trabalhadores não paguem taxas – isto teve como resultado benefícios de milhões para trabalhadores que tinham sido explorados [não sabia precisar quanto ao certo]. O próximo passo é levar o resto da indústria electrónica a tomar as mesmas medidas.
Esse é dos melhores exemplos. Há outros. Por exemplo, a Target [empresa americana] anunciou que só ia vender tapetes certificados – o que significa que grande parte dos seus tapetes serão livres de trabalho escravo infantil.
Só trabalham com empresas no problema da servidão por dívida, não noutras formas de escravatura?
O maior risco que as multinacionais enfrentam no sector formal das suas relações empresariais vem do processo de recrutamento de trabalhadores migrantes e na servidão por dívida que daí advém, esteja no sector da electrónica, da construção, da agricultura.
Qual é a dimensão do problema, tem números?
É muito difícil. Qualquer multinacional pode identificar facilmente onde este risco existe e dar passos para o resolver. Essa é a mensagem mais importante. Os números não sabemos, mas podemos quantificar o risco: quem estiver a trabalhar com população migrante corre esse risco. Pode acontecer em todo o lado onde há trabalhadores estrangeiros, até no Canadá.
Que tipo de trabalho fazem com as empresas, no local?
O grande trabalho é recolher informação junto dos trabalhadores e incutir nos patrões a necessidade de mudança, mudando depois as práticas de recursos humanos – porque estes trabalhadores não querem ir para casa, vieram por uma razão, querem ter a oportunidade de ganhar dinheiro. Por isso não queremos que eles voltem para casa, queremos que eles tenham um bom emprego. Foi o que fizemos na Apple.
Acredita que o problema da escravatura pode ser resolvido? Quanto tempo vai demorar?
Podemos reduzir em 90% o risco nas cadeias de fornecedores mundiais. O problema na Malásia pode ser resolvido com mudanças nas políticas e na abordagem das empresas ao problema. Não irá resolver o problema dos trabalhadores domésticos, da construção. Mas não há razão para que as multinacionais não resolvam o problema em cinco anos: quando tivermos informação sobre os bons e os maus recrutadores este problema é reduzido. Porque as multinacionais têm motivação, informação, recursos, e pessoas cujo trabalho é assegurar que o seu código de conduta é cumprido. Em cinco anos todas as multinacionais podem ter resolvido o problema de trabalhadores em situação de escravidão por dívida.