83 denúncias de violência doméstica por dia, 15 condenados por homicídio em 2010

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Aos 23 homicídios deste ano somam-se 39 tentativas de homicídio Foto: Manuel Roberto/arquivo

Pelo menos 15 homens foram este ano condenados por homicídios de mulheres. O levantamento feito pelo Observatório de Mulheres Assassinadas é apresentado às 10h30 de hoje, Dia Internacional pela Eliminação de Todas as Formas de Violência Contra as Mulheres, na sede da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta, em Lisboa.

Desde 2004, uma equipa passa a imprensa nacional a pente fino em busca de notícias sobre mulheres mortas por alguém com quem mantinham ou tinham mantido uma relação afectiva. Este ano, recorreu ao mesmo método para tentar seguir o rasto dos casos noticiados em 2010 até aos tribunais de primeira instância.

A primeira recolha mostra uma realidade sinuosa: 40 mortes em 2004, 34 em 2005, 36 em 2006, 22 em 2007, 46 em 2008, 29 em 2009, 43 em 2010

. Desde 1 de Janeiro deste ano, 23 homicídios e 39 tentativas de homicídio. Para já, é como se não houvesse ligação entre as mortes e as alterações introduzidas no quadro legal ou nas respostas às vítimas de violência.

Na nova recolha, um dado sobressai. As notícias sobre as sentenças dizem respeito aos crimes ocorridos entre Maio e Dezembro, salienta a responsável pelo Observatório, Elisabeth Brasil. Não há notícia de decisão sobre as três mulheres mortas em Janeiro, as duas mortas em Março, as duas mortas em Abril. "Parece que a partir de determinado momento houve uma orientação para se decidir estes casos em tempo útil", comenta.

Talvez seja um reflexo da interiorização da lei de 2009, segundo a qual os processos por crime de violência doméstica têm natureza urgente. Desde o crime até à decisão do tribunal de primeira instância passaram, em média, dez meses. O processo mais célere tardou seis meses a ter sentença.

Pena máxima: 25 anos

A pena máxima foi decretada pelo Tribunal de Tondela: 25 anos. Um administrativo do hospital local alvejou o pai e a madrasta, depois de a ter atingido uma dezena de vezes na cabeça, na cara e nas mãos, com um machado de cortar e picar carne.

O homem, de 38 anos, vivia com o casal de professores reformados. Na manhã de 27 de Julho teve uma discussão com a madrasta. Não era a primeira vez. Discutiam com frequência há anos. Aquele era o seu primeiro dia de férias. Ela queixou-se a uma vizinha: "A casa vai virar um inferno". Ainda conseguiu fugir da cozinha. Houve quem a tivesse ouvido pedir socorro, no jardim, já a esvair-se em sangue. O pai pegou no telefone. O filho deu-lhe um tiro no pescoço. Depois, acertou na madrasta.

A secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, Teresa Morais, acha que é tempo de o país perceber que a violência doméstica mata. Estava numa roda-viva ontem a ultimar os preparativos para o lançamento da nova campanha de sensibilização (ver caixa). Prometia choque: "Não tenho memória de uma campanha, em Portugal, que tenha abordado aquilo que pode ser a fase final da vida de uma vítima de violência doméstica".

Casos exemplares

Os casos noticiados no ano em curso são exemplares. "Cruzando a prevalência do homicídio com as relações de conjugalidade ou de intimidade, verificamos que 61% das mulheres assassinadas em 2011 foi vítima de violência naquela relação", lê-se no relatório, a que o PÚBLICO teve acesso.

Às vezes, acumulam-se queixas. Às vezes, até já houve separação. Três vítimas deste ano sucumbiram às mãos de homens de quem já se tinham separado. No ano passado, foram oito.

"Acho que ainda há alguma ligeireza na forma como os magistrados encaram estas situações", admite Teresa Morais. "Falta-lhes alguma sensibilidade para a gravidade da violência doméstica. A suspensão da pena surge, muitas vezes, em momentos em que ainda há risco para a vítima."

O último relatório do Ministério da Administração Interna dá uma ideia da profundidade do fosso: 14.508 participações de violência doméstica no primeiro semestre; no mesmo período, 28 condenações - apenas uma de prisão efectiva.

Duas condenações foram obtidas pela advogada Filomena Neto. "Não é fácil", avalia. É um crime que tende a ocorrer entre quatro paredes. Amiúde, há apenas a palavra de um contra a palavra do outro. Isolar a vítima é uma estratégia típica. E o silêncio até pode beneficiar o agressor. "Se era agredida há tantos anos, porque não disse?"

Em cada história, um turbilhão de sentimentos contraditórios. Os processos arrastam-se. Se a mulher se cala: arquivo. E nem sempre o silêncio é sinónimo de reconciliação. "Às vezes, usam-no como moeda de troca", observa Filomena Neto. Pode haver outros processos em jogo - regulação de poder paternal, divórcio, divisão de bens.

O que mais a inquieta é verificar que os comportamentos violentos tanto acontecem no seio de casais de 30, 40, 50 anos, como nos de 14,15, 16. Lembra-se de um caso de uma miúda de 16. Os pais mandaram-na para o estrangeiro. O "ex" ameaçava publicar na Internet fotografias dela sem roupa. "Namoravam desde os 13. Ele condicionou-a sempre - roupas, amigos, saídas." E é por casos como esse que defende um trabalho a sério nas escolas - com o alto patrocínio do Presidente da República, de preferência.

83 denúncias por dia

Nos primeiros nove meses deste ano, a PSP e a GNR registaram 22.483 queixas por violência doméstica - um número que equivale, em média, a 2498 participações por mês e 83 por dia. Na lista de distritos em que ocorrem mais casos, Lisboa surge em primeiro lugar, com 5237 participações, seguido do Porto (4757) e Setúbal (1762). Juntos, estes três distritos representam mais de metade das participações às polícias em todo o país. Em último lugar estão os distritos de Beja (197) e Portalegre (198).

A violência doméstica, segundo dados do Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2010, é o 5.º crime mais participado em Portugal. As forças de segurança contam, actualmente, com cerca de mil elementos com formação especializada para este tipo de crime.

Segundo dados do Ministério da Administração Interna, desde 2000, altura em que a violência doméstica passou a ser crime público, que se assistiu a um aumento das participações, embora esta tendência tenha desacelerado nos últimos dois anos. Maria José Oliveira

Campanha lançada hoje para "chocar" o país

"É um caso de vida ou morte." A frase vai andar por aí - em jornais, revistas, televisões, salas de cinema, centros de saúde, hospitais, ruas das principais cidades. A campanha - concebida por uma agência de comunicação e divulgada pelos media de graça - é apresentada às 15h de hoje, no Hospital Amadora-Sintra, em Lisboa.

A estratégia, admite a secretária de Estado da Igualdade, Teresa Morais, é de "choque". Não quer desvalorizar campanhas anteriores, mas acha que "está na altura de fazer algo mais impressionante" - para a população em geral e para as vítimas de violência em particular: "Há muitas mulheres com trajectórias de violência de décadas porque acreditam que os homens vão mudar. Queremos que elas deixem de acreditar nisso. A regra não é essa. E o risco é muito grande".

A luta contra a violência doméstica é, para Teresa Morais, uma "prioridade". "Por maior que seja a crise, não há cortes; pelo contrário, há um reforço do trabalho feito, porque o que se passa é bárbaro", remata.

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