As castas são filhas da mãe — e do pai
No arranque do projecto Terroir teríamos de ir ao princípio - à Vitis vinifera, que é a mãe de todas as grandes castas do mundo (mais de 5000). Ao longo do tempo dedicaremos espaço a este assunto porque é a partir das cerca de 250 castas autóctones que se cria a identidade do vinho português. Ou - melhor - dos diferentes vinhos portugueses. Por agora vamos explicar como é que as variedades se multiplicaram e vamos revelar quem são os progenitores das grandes castas nacionais. Pois, pois, é como no reino animal: as castas têm mãe e pai.
No princípio era Vitis vinifera
Entre as plantas do género Vitis, a espécie vinifera é aquela que dá origem a vinhos de qualidade. A sua origem está situada no Caucaso, mas diferentes estudos apontam para que a Península Ibérica seja outro solar original da Vitis vinifera. De uma forma ou de outra, o vinho nasceu desta trepadeira selvagem que, a partir da sua domesticação humana ao longo de milhares de anos, deu origem a mais de 5000 castas.
Acredita-se que o homem terá retirado da natureza videiras silvestres para as confinar em espaços primários de cultivo. Terá reagrupado plantas que, por uma qualquer razão – sabor ou quantidade de frutos produzidos - lhe pareciam consistentes. Admite-se, nesta fase que os investigadores gostam de classificar como estádio intermédio, que um campo de vinhas deveria a ser uma confusão de formas, feitios e cores da Vitis vinifera.
Com o tempo, o agricultor eliminou as plantas menos produtivas e deixou as que lhe davam mais rendimento, de maneira que os campos de cultivo começaram a ficar vegetativamente mais uniformes. À distância de milhares de anos, este estádio intermédio da cultura dá origem a debates intermináveis, em particular no que diz respeito aos mecanismos de reprodução das plantas Vitis vinifera. Inicialmente, a reprodução terá sido por semente (cujo resultado seria uma imensa diversidade) e só depois por via da replicação vegetativa, sistema esse que viria a inaugurar o conceito de casta ou variedade.
O cruzamento natural entre videiras, o domínio da multiplicação por via vegetativa, o consequente aparecimento de variedades geneticamente mais uniformes, ainda que sujeitas a mutações genéticas que ocorrem ao longo de milhares de anos e os diferentes terroir onde se cultivaram as vinhas acabaram por originar o conceito de casta - uma população até certo ponto uniforme, mas heterogénica quanto a importantes características. E assim se chegou, digamos, à fase científica da produção de vinho, que viria a desembocar no problemático conceito de seleção clonal, tendencialmente afunilador da diversidade intravarietal natural.
O milagre da multiplicação das castas
As castas/variedades, nascem através de dois processos: 1) cruzamentos em ambiente natural; 2) manipulação humana. Num caso ou noutro, acontece o mesmo que no reino animal. Isto é, cada casta nasce do cruzamento entre um progenitor masculino e outro feminino.
Cruzamento natural
Quando o pólen libertado de uma videira, como estrutura masculina, é levado por insectos ou pelo vento para a parte feminina de uma flor de outra videira nas proximidades, isso dá origem a frutos com sementes (no caso, os bagos, agrupados num cacho de uvas). Estas sementes caem no solo como estratégia de sobrevivência da própria espécie e, deste modo, de cada uma nasce uma planta filha, que depois de multiplicada pode ser uma nova variedade/casta. Se, ao longo do tempo, um agricultor se apercebe de que a nova casta tem características que lhe interessam (por maior rendimento, novos aromas ou resistência a doenças), multiplica-a vegetativamente, que é a forma de garantir a sua individualidade genética.
Cruzamento artificial
Seja porque precisamos de castas que resistam às doenças sem uso de produtos fitofarmacêuticos, seja porque temos de aumentar ou melhorar um determinando parâmetro de certa casta, há quem se entretenha a substituir a natureza. Como? Transportando pólen de certas castas para o sistema reprodutor feminino de outras. Quem, em Portugal, mais obra deixou nesta matéria foi o engenheiro José Leão Ferreira de Almeida, que criou dezenas de variedades de uvas para a produção de vinhos ou para a produção de uva de mesa. Como exemplos na primeira categoria, temos a muito rara e badalada Sercialinho (dá um vinho de grande qualidade) ou a muito produtiva Seara Nova. Na segunda categoria, a uva de mesa Dona Maria, variedade em declínio pelo aparecimento no mercado de outras temporãs e sem grainhas.
Quem é filho de quem
Num país com cerca de 250 castas autóctones, não se conhecem os progenitores de todas. Ainda assim, com o apoio da enorme base de dados alemã que é Vitis International Variety Catalogue (VIVC), a equipa do professor Antero Martins - Instituto Superior de Agronomia (ISA) e Associação Portuguesa para a Proteção da Videira (Porvid) - tem revelado algumas curiosidades: a primeira é que, para a realidade portuguesa, quatro castas deram uma descendência considerável. São elas o Alfrocheiro (existe também em Espanha), Marufo (ou Mourisco) Amaral (Azal nos Vinhos Verdes) e a Cayetana Blanca ou a Heben (espanholas), o que significa que as plantas não conhecem o conceito de fronteira. A segunda é que - como no reino animal - cruzamentos entre os mesmos progenitores dão origem a castas diferentes, pelo que temos por aí várias castas que são irmãs. E, terceiro, temos castas nacionais importantes que são incógnitas de um dos lados, do pai ou da mãe. Aqui ficam alguns exemplos de cruzamentos
Tinta Roriz/Aragonês
Albillo Mayor X Benedicto
Nascida em Espanha (Tempranillo), acaba por ser a grande casta tinta ibérica e uma das mais plantadas em todo o mundo por ser generosa para o agricultor, circunstância que exige cuidados para a obtenção de vinhos de qualidade. De tintos a Porto, passando por espumantes, ou Blanc de Noir, é uma casta versátil.
Touriga Franca
Touriga Nacional X Marufo (ou Mourisco)
Os ingleses gostam de dizer que a Touriga Franca é o back bone dos vinhos do Porto, querendo com isso dizer que é estruturante na feitura do vinho do Porto. E quem diz o vinho do Porto diz todos os tintos do Douro e de várias regiões do país. Já agora, a Tinta Barroca, Tinta Aguiar, Tinta da Barca e Melra também são irmãs (resultaram do mesmo cruzamento).
Malvasia
Heben X Amaral
Cá está um caso que baralha os consumidores, por comparação à Malvasia Fina. São bem diferentes. Quando se fala em Malvasia fala-se na Malvasia de Colares, que é uma casta muito apreciada por quem gosta de brancos complexos, com aromas e sabores minerais, marinhos e salgados. Beber um Malvasia com menos de 5 anos de vida é um desperdício.
Castelão
Cayetana Blanca X Alfrocheiro
Apesar de ser uma casta importante nas regiões do Tejo e da Península de Setúbal, perdeu alguma notoriedade nos últimos anos. Aos poucos, os produtores percebem que pode ser uma mais-valia quando a oferta de vinho é demasiado padronizada. Bem cuidada, a casta dá origem a tintos distintos.
Malvasia Fina
Heben X Alfrocheiro
Agora, mudando a mãe espanhola (de Cayetana Blanca por Heben) temos o nascimento da Malvasia Fina, que existe em maior abundância no Douro e em Távora-Varosa, onde participa nos lotes dos vinhos brancos. E, para exemplificar o velho problema da multiplicação de nomes para as mesmas castas mas em regiões diferentes, a Malvasia Fina também é conhecida como Boal, Boal Branco, Assario Branco e Arinto Galego.
Arinto
Branco Escola X Castelão
É a casta branca mais importante do país, espalhada por todas as regiões vitivinícolas. Por ser rica em ácidos, é obrigatória nas vinhas das regiões quentes. Muito plástica na adega, atinge o seu expoente na pequena região de Bucelas, em parte devido aos solos calcários, em parte devido ao clima moderado da região.
Vital
Malvasia Fina X Rabo de Ovelha
Casta bastante caprichosa na vinha (num dia os cachos estão saudáveis e prestes a serem colhidos e dois dias depois tudo se estraga) é insignificante do ponto de vista de produção na extensa região de Lisboa. Todavia, começa a assistir-se ao seu regresso. E ainda bem. A Vital dá origem a vinhos que se tornam complexos com a passagem do tempo.
Loureiro
Amaral (Azal) X Branco Escola (Pintosa)
Se muitos brancos portugueses com uns bons anos de garrafa podem fazer lembrar vinhos feitos com a casta alemã Riesling, aqueles que são feitos com Loureiro acentuam muito bem esse lado mais químico e mineral. Só é pena não termos o hábito de deixar envelhecer Loureiros.
Baga
Malvasia Fina X Pai incógnito
A grande casta da Bairrada nunca foi consensual, quer pela irregularidade de produção quer pela necessidade de estágio em garrafa que imponha aos vinhos. Um trabalho de melhor escolha de solos, a redução de chuvas em setembro, algum trabalho de enologia, o aparecimento do espumante Baga Bairrada e o nascimento dos Baga Friends são factores que ressuscitaram a casta. Em boa hora.
Fernão Pires
Malvasia Fina X Pai incógnito
Será a casta branca mais plantada em Portugal, muito enraizada nas regiões do Tejo, Península de Setúbal, Lisboa e Bairrada, onde dá pelo nome de Maria Gomes. Por regra, é usada para a produção de vinhos jovens, com aromas florais vincados, mas, atenção, é uma casta que dá para tudo Para vinhos jovens, vinhos de guarda, espumantes, colheitas tardias e até aguardentes.
Portugal não é apenas um dos países com maior riqueza de castas. É também o país que mais conhecimento científico produz em matéria da genética das castas. Esta escola criada por Antero Martins chama-se Selecção Policlonal e é determinante para conservação da videira e para a defesa da qualidade do vinho no curto, médio e longo prazo. E sobre ela falaremos no próximo capítulo.
Veja também As castas são filhas da mãe — e do pai (parte II) .