That Dragon, Cancer conta uma infância em chamas
Um videojogo criado por uma família para contar a história verídica de como lutaram com o seu filho contra o cancro.
Jogar That Dragon, Cancer é ser convidado para o luto de uma família, é sermos colectivamente a tentativa de vírgula na sua dor. Seria de emoção árdua de digerir se fosse mais uma obra ficcional; é o implacável ressoar da paragem de um coração por não o ser. São duas horas a assistir ao nó que a morte de uma criança provoca em quem o ama, testemunhando a esperança em desatá-lo, ou em pelo menos alargá-lo um pouco para que seja possível respirar.
Amy e Ryan Green têm um filho, Joel. Aos 12 meses de vida, Joel é diagnosticado com cancro no cérebro. O médico informou-os que o seu filho sobreviverá durante aproximadamente um ano, Joel conseguiu resistir à doença durante quatro. Amy e Ryan Green criaram um videojogo para contar essa jornada e homenagear o seu filho. That Dragon, Cancer é esse videojogo.
O jogador sabe o desfecho da obra, consegue ver mais longe que todos os envolvidos conseguiam na altura dos desenvolvimentos relatados, ou seja, é uma perspectiva viciada de um percurso com vários pontos baixos, de desespero, mas também com várias lufadas de esperança, do querer acreditar que tudo ficará bem, que tudo tem que ficar bem, de que é apenas uma pequena montanha a escalar em família.
Contado ao longo de 14 curtos episódios, os criadores, em conjunto com a produtora Numinous Games, encontraram uma forma estilizada para deixar a narrativa escorrer pela consciência de quem joga, assumindo uma liberdade artística que não se escusa a recorrer a algumas metáforas que ancoram a eficácia do que vai passando no monitor. Ou seja, esquivam-se a que a apresentação dos factos choque gratuitamente e seja matéria para quem eventualmente quisesse agigantar-se voyeur perante a montra para a vida de uma família distante.
Chegamos à vida da família Green com Joel a dar pão aos patos rodeado de natureza enquanto ouvimos as vozes do resto da família a mencionar algumas anomalias no seu comportamento. É a inocência a descrever que Joel tem quase cinco anos e que ainda não consegue falar. “Quem tem dois anos consegue, porque é que o Joel não consegue?” E a explicação: “Ficou doente logo depois de ter feito um ano” e “isso abrandou-o um bocadinho”. “Penso que eventualmente acabará por recuperar,” diz o pai. “É suposto o Joel ser um rapaz, mas é um bebé. É um rapaz bebé”, continua um dos irmãos.
O jogo não demora muito a rebobinar a vida destas pessoas e a começar a ilustrar vários momentos anteriores. Ryan está sentado num cadeirão no hospital e segura Joel nos seus braços. Tubos com tratamentos fluorescentes fazem parte da esperança e da rotina. Os pais não querem ser ilustrados como feitos de aço, vamos ouvindo mensagens deixadas nos telefones, Amy e Ryan vão aprendendo a lidar com a situação, gerindo as expectativas como sabem e podem, ajustando-as aos desenvolvimentos sem se vergarem à constatação de que o seu filho iria morrer.
Um dos marcos do jogo e um dos momentos que mais predominará na memória de quem o jogar é o trecho em que os médicos dizem à família que a situação não é boa. Além da importância e da frieza do momento, a forma como está contada permite perceber o que os pais pensam naqueles exactos minutos. É um rombo emocional enorme, deixando qualquer um atónito com a força da doença, a crueldade com que fixa os dentes e aperta sem piedade. No jogo, a sala enche-se lentamente de água. “A situação não é boa.” Como é que se lida quando a medicina diz olhos nos olhos que a situação de um filho não é boa?
É também um teste à coesão da família, fazendo-a passar pelo fogo, deixando os pais em patamares diferentes resultantes da forma como o individual lida com a doença e a insere no colectivo. Em determinado momento do jogo, Ryan diz que Amy escreveu que se sentia como uma criança na véspera de Natal antes da primeira operação do Joel quando lhe descobriram o tumor. Há opções e tomadas de posição que causam atrito entre eles, provando o desgaste que a doença faz fora do corpo onde está alojada. Mas também são ilustrados os momentos em que regressam à união, ao compromisso da unidade para juntos serem mais fortes.
Particularmente durante a segunda metade de That Dragon, Cancer, é notório o factor religioso. O desesperar por ajuda, independentemente de onde ela possa chegar. Concorde-se ou não, acredite-se ou não, isso não é relevante para a forma como se joga. Convém não esquecer que esta é a história daquela família. Como eles acreditam, é perfeitamente natural que isso seja retratado na obra, tal como era natural a sua ausência se fosse a história de uma família sem crenças religiosas.
Desde que se começa e sabendo qual foi o desfecho real, é natural que uma das perguntas mais multiplicadas pelos jogadores seja como é que o jogo terminará, ou seja, como é que será transportado para o digital o que verdadeiramente aconteceu. Tal como já tinha sido mencionado sobre o resto da obra, também a recta final apresenta a mesma descrição: Joel está rodeado do que gosta, a fazer o que gosta. O jogador que assimile isto e que seja ele a projectar a ponte até ao ponto final.
Em termos mais práticos, That Dragon, Cancer é uma aventura gráfica muito ligeira. Em vez de controlarmos directamente os protagonistas, pressionamos um botão e o jogo faz a acção desejada, seja interagir com pessoas e objectos, seja fazer a deslocação pelos cenários. Traduzir uma situação como esta em videojogo seria sempre um processo delicado, com os criadores a optarem por uma jogabilidade simples. Isto desiludirá quem precisa de intervir mais nos seus desígnios jogáveis, mas mantém-se fora da mensagem a passar.
Em determinados trechos, o jogo abre-se a outros géneros. Sempre com uma toada simplista, podemos participar numa corrida que faz lembrar Mario Kart e, posteriormente, num jogo dentro do próprio jogo que é apresentado em side-scrolling horizontal. Tudo isto tem um propósito inserido na toada do título principal. O segundo, por exemplo, serve para ilustrar a explicação da doença de Joel aos seus irmãos.
Ocasionalmente ocorrem alguns soluços no percurso. A jogabilidade tem momentos em que não se enquadra, o que acaba por minar o seu propósito de não se intrometer. E a escrita, ainda que quase sempre siga um estilo eficaz, tem algumas tiradas em que a narração se perde na efabulação. Não é nada que se aproxime sequer de danificar o que o jogo vale como um todo, mas é provável que tenham mais protagonismo que o necessário.
O estilo gráfico favorece tudo o que já foi sublinhado, revelando rostos sem pontos que os possam identificar, apesar de os traços gerais serem facilmente comparáveis com as fotografias dos protagonistas. Fica a sensação de que assim é mais fácil ao jogador imaginar quem quiser naqueles sofrimentos e naquelas esperanças. E a banda sonora também está lá apenas para alavancar sentimentos, deixando pista livre para que a vocalização, o riso, o choro, o grito, enfim, para que o gutural se assuma como líder.
That Dragon, Cancer é um jogo importante. É importante jogá-lo ou pelo menos saber da sua existência. É uma aposta na maturação dos videojogos, servindo de estudo à reacção dos jogadores, percebendo se o público cresceu tanto como os temas que os videojogos abordam. Mesmo esquecendo esse impacto, tem várias valências por mérito próprio. É verdade que também falha algumas vezes; contudo, é uma ilustração crua de um percurso arrasador.