Taróloga aconselha paciência a suposta vítima de violência doméstica

Multiplicam-se as visualizações de vídeo de programa da SIC que está a gerar indignação nas redes sociais.

Uma onda de indignação está a propagar-se pelas redes sociais: na manhã desta quinta-feira, na SIC, no programa A Vida Nas Cartas – o Dilema, a taróloga Carla Duarte aconselhou uma mulher que se apresentou como vítima de violência doméstica a ter paciência com o marido e a mimá-lo, como se fosse um filho.

Maria Glória telefonou na expectativa de Carla Duarte lhe dizer qual o seu actual estado de saúde e se o seu marido tem outra. A mulher, de 64 anos, anda assustada com a possibilidade de ter um tumor maligno, como já aconteceu a vários membros da família, e o comportamento do marido não ajuda. “Ando muito nervosa derivado ao meu marido. Há 40 anos que eu sofro de violação doméstica, como é que se diz isso?”, pergunta. “Violência”, auxilia a taróloga. “Ele bate-me, ele faz…”

Carla Duarte não quer ouvir mais. Está na hora de dizer qual o número para o qual os espectadores podem ligar para lhe colocar dois dilemas. Quando retoma a conversa com Maria da Glória, deita as cartas, diz-lhe que, apesar dos antecedentes familiares, “ainda não tem nada”, que vá fazendo exames periódicos. Sobre a relação conjugal, aconselha-a a pensar no que pode fazer. “O que interessa se ele tem alguém ou não, mediante o que você tem em casa? Para já, ele não tem ninguém. Está aqui sozinho. Ah. Ele quer uma mãe, não quer uma mulher.”

A taróloga recomenda paciência à espectadora. Aconselha-a a não discutir, a não procurar conflito. “Não está aqui nenhuma separação, por isso você escolheu este homem, independentemente de tudo, por enquanto é com ele que vai ficar”, declara. “Quando damos amor, recebemos amor, mesmo que seja em menos quantidade. Se damos violência, recebemos violência. Se você recebe violência, corte este ciclo e não dê violência, nem que seja por palavras ou… mime-o. Por muito difícil que isso seja, por muito difícil que isso seja. Está bem?”

Ainda se ouve-se Maria da Glória dizer: “É muito difícil sim. Tenho de andar sempre à frente, a fazer as pazes”. E Carla Duarte a retorquir: “Pois tem. Como se fosse a mãe. E continue, que é para isto não piorar. E assim não piora. Está bem? Você conhece-o bem, sabe como é que lhe pode dar mimo.”

A indignação chegou às redes sociais. Escreveu a jornalista Rita Marrafa de Carvalho na sua página no Facebook: “Nunca fala em APAV [Associação Portuguesa de Apoio à Vítima]. Em respeito. Em dignidade. Em ‘vá-se embora que merece mais e melhor’. Nunca diz ‘não tem de se sujeitar a um casamento violento’.”

Ao final do dia, a mensagem daquela jornalista da RTP já tinha sido partilhada por mais de mil pessoas e o vídeo já contava perto de 100 mil visualizações. Inúmeras pessoas diziam que se iam queixar e incentivavam à queixa à Entidade Reguladora da Comunicação Social.

“Os meios de comunicação social têm sido essenciais na divulgação de informação a vítimas de crime, em particular a vítimas de violência doméstica”, ressalva Daniel Cotrim, da APAV,  numa conversa por telefone. Programas como aquele são vistos por muitas pessoas, algumas vítimas de violência doméstica. Seria fundamental, diz, não culpabilizar a vítima e não desculpabilizar o agressor.

"A propagação de um discurso de culpabilização das vítimas e de desresponsabilização dos agressores não só acentua a vulnerabilidade das primeiras, como as coloca numa posição de risco acrescido", defende, em comunicado, a Associação Plano I. "Insinuar que na génese da violência na intimidade está o comportamento das vítimas, isto é, que são elas a causa da vitimação que sofrem e, mais do que isso, que lhes compete agir no sentido da manutenção das relações abusivas, cuidando dos agressores como filhos, contribui para a sustentação de um clima de impunidade e de legitimação dos agressores francamente lesivo dos direitos das vítimas."

 

Violência doméstica é crime público

A violência doméstica é um crime público, o que quer dizer que não depende da queixa da vítima. Os espectadores não terão dados para levar aquele caso às autoridades. Podem, lembra Daniel Cotrim, manifestar indignação à produtora, à direcção de programas ou à Entidade Reguladora da Comunicação Social.  “Isto não pode acontecer. Enquanto membro de uma organização de apoio à vítima, estou indignado.”

A Associação Projecto Criar pondera pedir responsabilidades à SIC. “A taróloga não sabe o grau de violência”, salienta Leonor Valente Monteiro, presidente daquela organização. “Aconselhar a senhora a nem sequer recorrer às autoridades pode ser fatal.”

No seu entender, “deveria haver um manual de boas práticas para este tipo de situações”. “Se uma pessoa contacta um canal de televisão a pedir aconselhamento e denuncia um crime, deve ser aconselhada a recorrer aos canais disponíveis para as vítimas", considera. "As pessoas que têm acesso a espaços televisivos, em particular espaços de aconselhamento pessoal, deveriam abster-se de ter discursos cúmplices com crimes públicos.”

Na opinião daquela jurista, a atitude da taróloga reflecte o país. “Vivemos numa sociedade que silencia as vítimas e que coloca o foco no comportamento delas e não no comportamento dos agressores. Uma sociedade assente na crença do amor romântico que tudo resolve, que tudo consegue.”

Contactada pelo PÚBLICO, a SIC remeteu uma eventual reacção para sexta-feira. O PÚBLICO está a procurar contactar Carla Duarte, até agora sem sucesso. 

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