Subsídio para alunos com deficiência só com declaração de médico
Novas regras entram em vigor nesta quarta-feira. Requerimentos devem ser entregues na Segurança Social. Fenprof e especialistas falam de "retrocesso".
Em 2012 havia mais de 15.500 crianças e jovens com algum tipo de deficiência a receber o “subsídio por frequência de estabelecimento de educação especial”. Precisavam de um apoio especializado que não estava disponível nas escolas de ensino regular. Mas o número de jovens apoiados foi encolhendo e em 2015 apenas 10.217 receberam este subsídio. A redução foi alvo de muitas críticas de alguns pais e associações. Nesta terça-feira foi publicado, em Diário da República, um diploma que, nas palavras do Governo, “garante” o subsídio a quem preenche os requisitos.
As famílias devem, a partir desta quarta-feira, entregar os pedidos junto do Instituto da Segurança Social (ISS), faz saber o ministério de Vieira da Silva. Quem já “entregou os requerimentos nas escolas, como era habitual até agora, não tem de se preocupar porque haverá comunicação dos processos à Segurança Social”, acrescenta em resposta ao PÚBLICO. Mas o diploma não é consensual, como se verá.
Para já vejamos o que diz o novo decreto regulamentar n.º 3/2016. Em primeiro lugar, define que este subsídio se destina a crianças e jovens até aos 24 anos que possuam “comprovada redução permanente de capacidade física, motora, orgânica, sensorial ou intelectual”. O objectivo é que as famílias possam suportar, por exemplo, as mensalidades de um estabelecimento de educação especial (na sua maioria pertencentes a instituições particulares de solidariedade social), ou que, tendo os filhos no ensino regular, precisem de apoio individual de técnico especializado — um terapeuta da fala, por exemplo.
O que contém de novo o diploma? Desde logo, define que tem de ser um “médico especialista” a comprovar o estado de “redução permanente de capacidade” da criança ou jovem. Até agora, atribuía-se essa tarefa a “equipas ou serviços multidisciplinares de avaliação médico-pedagógica” e só quando estas não estavam disponíveis era solicitada uma declaração de um “médico especialista” na deficiência em causa.
Com o novo diploma passa também a ser o “médico especialista” que diz quais os apoios de que a criança ou o jovem precisam. E este é um dos aspectos que estão já a suscitar mais dúvidas. Mesmo prevendo o diploma que, nalguns casos, a Segurança Social possa submeter os processos das crianças a "equipas multidisciplinares de avaliação médico-pedagógica", ainda a regulamentar.
“Retrocesso brutal”
A coordenadora da área do ensino especial na Federação Nacional de Professores (Fenprof), Ana Simões, lamenta, em primeiro lugar, “que o actual Governo mantenha as opções de governos anteriores”. Ou seja: “Havendo necessidade de apoios específicos eles deviam estar disponíveis nas escolas públicas, que deviam poder contratar os técnicos de apoio especializado necessários, em vez de se pagar a entidades externas” para disponibilizarem esses apoios, seja a escolas privadas de educação especial ou a clínicas, por exemplo.
Em segundo lugar, Ana Simões critica o facto de o novo decreto “desvalorizar a parte pedagógica” na avaliação dos apoios que as crianças e jovens precisam. E explica: se dantes a prova da deficiência “era feita por equipas ou serviços multidisciplinares”, isso significava que tanto médicos como professores e psicólogos que trabalhavam com alunos definiam quais os apoios de que eles precisavam. “Um médico pode achar que um jovem com Trisomia 21 precisa de um determinado apoio e o professor e o psicólogo que conhece o contexto escolar achar que ele precisa de outro apoio, para além desse.”
Mário Nogueira, secretário-geral da Fenprof diz mesmo, citado pela Lusa, que esta é uma legislação que tem como objectivo deixar mais crianças e jovens com deficiência de fora, ao "afunilar" os critérios de atribuição e ao depender sobretudo de uma análise clínica.
Júlia Serpa Pimentel, professora do ISPA — Instituto Universitário e membro da associação Pais-em-Rede, uma ONG para pessoas com deficiência, vai mais longe: diz que este decreto, nalguns aspectos, representa “um retrocesso brutal” e apresenta “uma avaliação retrógada do que deve ser a avaliação” dos apoios que as pessoas com deficiência necessitam do ponto de vista educativo.
De positivo vê o facto de o diploma definir que os médicos que façam as avaliações das crianças não podem ser os mesmos que vão prestar esses apoios especializados (nem sócios das clínicas onde esses apoios sejam prestados).
Também José Morgado, do Centro de Investigação em Educação do ISPA, que muito tem estudado e escrito sobre as questões da educação inclusiva, diz que se está a “acentuar uma visão e um modelo de natureza clínica” que há muito se tinha minimizado.
O professor dá um exemplo: “Não é difícil a um médico avaliar e atestar que um aluno é cego. Mas o que sabe um médico sobre o tipo de trabalho educativo que é preciso fazer com esse aluno? Tenho dúvidas! Não é a sua área.”
Tanto José Morgado, como Ana Simões e Júlia Serpa Pinto acreditam que deviam continuar a ser equipas multidisciplinares a decidir os apoios para estes alunos. “Dantes, pelo menos nos preâmbulos da legislação nesta área — educação e apoios a crianças e jovens com deficiência — ainda se falava de ‘educação inclusiva’, agora nem isso”, acrescenta José Morgado.
Este especialista questiona ainda o facto de o diploma dizer que têm direito a este subsídio crianças e jovens que frequentem estabelecimentos de educação especial, mas não dizer quem decide e como se avalia quem sai do ensino regular para esses estabelecimentos. “É uma opção das famílias? Podem dizer que preferem que o filho frequente uma Cerci, porque a Cerci tem transporte, ou seja, mais por uma questão logística do que pedagógica? São as escolas do ensino regular que podem dizer que não têm capacidade de resposta para aquele aluno? É o médico especialista? Qual é filtro, qual é o critério?”
Lembra que actualmente entre 93% e 95% dos alunos com necessidades educativas especiais (não só deficiências) frequentam o ensino regular. “A opção tem sido a de criar no ensino regular unidades de apoio especializado...” Isso é "educação inclusiva". Morgado admite contudo que há "o risco de retorno à resposta educativa institucionalizada logo desde o início da escolaridade obrigatória".
Montantes mantêm-se
O subsídio de educação especial tem um montante variável em função dos rendimentos das famílias. E isso não muda. O Ministério da Segurança Social faz saber que “os montantes e fórmulas de cálculo” não foram alteradas. “Contudo, e para facilitar a instrução do processo, os beneficiários do abono de família não precisam de preencher alguns campos do requerimento relativos a rendimentos.”
Mais: “Neste novo diploma, e tendo em conta a condição permanente da deficiência para atribuição do subsídio, os requerentes ficam dispensados de apresentar anualmente este mesmo comprovativo. Apenas têm de apresentar anualmente uma declaração médica que fundamente os apoios técnicos especializados necessários para cada caso."
Prevista está, igualmente, a possibilidade de os pais solicitarem ao ISS “o pagamento directo do subsídio às entidades que prestam o apoio técnico especializado”.
No ano passado a despesa com este subsídio rondou os 16,2 milhões de euros. O universo de beneficiários tem vindo a diminuir. A Associação Nacional de Empresas de Apoio Especializado recorreu mesmo à justiça, existindo já sentenças de tribunais administrativos a intimar o ISS a repor aquela prestação a algumas famílias a quem ela foi retirada. Para a associação muitos requerimentos começaram a ser chumbados depois de em 2013 a avaliação das crianças ter deixado de ser feita por médicos especialistas e ter passado para equipas multidisciplinares.