Sobrevoando outros espaços jurídicos...

Julgados duas vezes pela mesma infracção?

O início do julgamento do primeiro processo da Operação Furacão quase coincidiu com uma importante audiência no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) perante a Grande Câmara nos processos Frisvold e Flom-Jacobsen contra a Noruega, em que se discutem relevantes questões sobre as relações entre a justiça penal e a justiça fiscal. Basicamente, estes cidadãos noruegueses não declararam ao fisco uma parte substancial dos seus proventos e, tendo sido descobertos, foram obrigados a pagar o que era devido de impostos por esses proventos a que se somou uma multa correspondente a 30% do valor dos impostos devidos e não pagos.

Foram posteriormente julgados pelo crime de fraude fiscal agravado e condenados a penas de prisão. Recorreram para os tribunais superiores invocando expressamente o Artigo 4.º do Protocolo n.° 7 à Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, que consagra o direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez nos seguintes termos: “Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisdições do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal desse Estado.”

Alegavam que já tinham sido julgados e condenados pela Autoridade Tributária pelos mesmos factos que agora eram condenados criminalmente em verdadeiros termos criminais no pagamento de uma coima no valor de 30% do valor dos impostos devidos. Tinham sido perseguidos e punidos duas vezes pelos mesmos factos em violação do referido direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez.

Não tiveram sorte nas instâncias nacionais e o caso desaguou no TEDH, onde no passado dia 13 se realizou a referida audiência.

O TEDH já se debruçou sobre questões semelhantes no passado. A questão para resolver é a de saber se qualquer um dos dois cidadãos noruegueses tinha sido julgado e punido de novo por uma infracção pela qual já tinham sido condenados definitivamente.

Como se sabe, o TEDH funciona muito com base na regra do precedente numa curiosa alquimia com a corrente anglo-saxónica, estabelecendo requisitos ou testes que vai, eventualmente, aperfeiçoando mas que em obediência ao princípio latino stare decisis, isto é, manter o que já está decidido, permitem perceber o enquadramento que vai ser dado à questão sob apreciação.

Em anteriores decisões, o TEDH já concluiu que não é pelo facto de haver duas decisões punitivas diferentes proferidas por autoridades diferentes que passa automaticamente a ser violado o referido direito a não ser julgado ou punido mais de uma vez. É preciso averiguar se estamos na presença de procedimentos paralelos que são permissíveis em alguns casos ou na presença de duas perseguições sucessivas pela mesma infracção, o que não é admissível face ao referido direito. E também é necessário apurar em que medida essas duas punições resultam de processos suficientemente simultâneos e conexos para fazerem todos parte do mesmo poder de sancionar o Estado.

Uma futura decisão do TEDH que será claramente relevante no mundo da Justiça — que é o mundo de todos nós — e de que daremos notícia logo que se ouça a voz da Rádio Estrasburgo... E, mantendo a firme intenção de me afastar da realidade nacional e de não falar dos nove candidatos que têm animado os ecrãs nacionais, agora é do outro lado do Atlântico que se aguarda uma decisão interessante.

O processo entrou no tribunal do Kentucky pelas mãos do queixoso John David Boggs contra o réu William H. Merideth.

Segundo o queixoso, no dia 26 de Julho do ano passado quando pilotava o seu drone equipado de uma máquina para captar imagens em vídeo ou em fotografia, a uma altura de aproximadamente de 60 metros o mesmo foi abatido com um tiro de espingarda dado pelo réu. Merideth não negava ter disparado o tiro. Mas, afirmava, fizera-o no seu pleno direito. O drone estava a sobrevoar a sua propriedade, onde estava de resto a sua filha, podendo captar fotografias de momentos privados, ou mesmo íntimos, diríamos nós. Os anglo-saxónicos falam simplesmente da privacy. Boggs queria 1500 dólares para a reparação do seu drone.

Um primeiro tribunal estadual absolveu Merideth por considerar que este tinha direito a pôr termo à invasão da sua privacidade. Mas Boggs apresentou há dias um novo processo num tribunal federal contra Merideth. As questões técnicas são complexas e levantam fascinantes questões, nomeadamente das competências da Federal Aviation Administration, que, tradicionalmente, só regulava como espaço aéreo navegável o ar a partir dos 152 metros de altura contada do solo.

Merideth não tem quaisquer dúvidas: faria o mesmo outra vez, já que um cidadão tem o direito de proteger a sua privacy, defendendo de intrusões o espaço aéreo que o circunda de uma forma próxima.

Logo que houver desenvolvimentos neste processo, darei notícia, entretanto pode pensar e decidir quem tem razão, ao mesmo tempo que reflecte para as eleições presidenciais...

 

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