“Ser contra a reutilização dos manuais é passar um atestado de diminuição aos portugueses”
Secretária de Estado da Educação Alexandra Leitão critica e desmonta parecer do constitucionalista Gomes Canotilho que, a pedido da APEL, avaliou nova política de oferta e reutilização dos manuais escolares.
Mais de 90% dos alunos do 1.º ano do básico receberam os manuais oferecidos pelo Estado, aceitando a condição de os devolverem quando as aulas acabarem. O primeiro ano da política socialista teve aceitação das escolas e das famílias. Quem está contra é a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), que encomendou um parecer no qual Gomes Canotilho abre a controvérsia sobre a eventual inconstitucionalidade da medida. Em entrevista, a secretária de Estado da Educação, Alexandra Leitão, também jurista, defende a nova política como sendo, pelo contrário, uma espécie de constitucional “ao quadrado”.
A poucos dias do início da discussão do Orçamento do Estado, surgiu um inesperado parecer do respeitadíssimo constitucionalista Gomes Canotilho a pôr em causa a oferta dos manuais aos 90 mil alunos do 1.º ano do básico. Quem encomendou este parecer?
O parecer foi-nos enviado na tarde de sexta-feira, 30 de Setembro, já depois de termos sido contactados por um jornal a pedir uma reacção. O parecer veio capeado por um ofício da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, que diz que o solicitou e o considera um elemento interessante para a discussão.
Que leitura faz do parecer?
Por muito respeito que tenha por quem o subscreve — até porque sou jurista e professora da Faculdade de Direito de Lisboa — não concordo. Tenho um respeito enorme, enorme pelo professor Gomes Canotilho, mas as opiniões podem divergir. Em primeiro lugar, ao contrário do que diz o parecer, a gratuitidade do ensino (artigo 74.º da Constituição), se impõe alguma coisa, impõe a gratuitidade dos manuais escolares. Em muitos países da Europa, é essa a interpretação que se faz de “ensino gratuito”. Ensino gratuito é ser tudo gratuito. Nessa perspectiva, não compreendo que se diga que a gratuitidade é inconstitucional, como não percebo que se diga que a reutilização é inconstitucional.
A única via de chegar à ideia de que a reutilização é inconstitucional seria entender que ela viola algum tipo de equidade ou proporcionalidade. Ora, hoje as crianças da Acção Social Escolar (ASE) devolvem às escolas os manuais no fim do ano. Equidade é todos fazerem o mesmo. E até agora nunca vimos preocupações sobre o efeito que a devolução dos livros tem sobre o sucesso escolar das crianças desfavorecidas. Pelo contrário. Há três pareceres do Conselho Nacional de Educação — de 1989, 2006 e 2011 — em que é dito que a reutilização é desejável.
Se é desejável para todos, a medida só vai trazer equidade, porque todos estarão na mesma situação: como as crianças da ASE, têm que devolver os livros no fim do ano.
Quantos alunos recebem manuais pela Acção Social Escolar?
São 30% dos alunos, que fazem a reutilização dos manuais há cinco anos. Se é possível reutilizar manuais escolares para estas crianças, é possível para as outras.
Como funciona a reutilização com esses 30%?
As crianças devolvem os livros e as escolas têm uma bolsa de manuais. Na secretaria ou na biblioteca, juntam-se os manuais devolvidos e é feita uma análise do seu estado. No ano seguinte, são redistribuídos.
Gomes Canotilho coloca o problema de as crianças precisarem de estudar para os exames e, tendo que devolver os manuais, não poderem preparar-se. Como se resolve este problema?
Da bolsa de manuais — e já há imensas escolas que o fazem — uns são dados às crianças e outros ficam na biblioteca. Quem precisa de os consultar, vai à biblioteca. É isso que se faz em França e na Finlândia. No Montijo, o agrupamento das escolas Poeta Joaquim Serra faz reutilização há dez anos, incluindo no 1.º ciclo. Os pais já quase não compram manuais porque a bolsa tem anos e já há livros suficientes. Quem faz a recuperação dos livros é o Gabinete de Inclusão e Cidadania da escola. Ser contra a reutilização é passar um atestado de diminuição ao povo português.
Quantos anos serão precisos para tornar Portugal nesse “Montijo ideal”?
Depende de quão rapidamente se consiga avançar na gratuitidade. Estamos no primeiro ano. A gratuitidade tem de ser gradual.
O Governo vai alargar a oferta de manuais a todo o básico já neste Orçamento do Estado?
Seguramente, vamos avançar para o 2.º ano do 1.º ciclo. Mais do que isso está em análise final. O que está em análise é a rapidez do gradualismo, mas avançar com a medida ano a ano é um dado adquirido. Depende da taxa de reutilização. Este ano, 92% dos alunos receberam os livros do Estado. Mas sabemos que a reutilização no 1.º ano será mais difícil do que no 9º.
A dez anos, a poupança do Estado poderá ser de quantos milhões?
No dia em que houver gratuitidade do 1.º ao 12.º ano, há uma enorme componente do valor que se gasta hoje na ASE — 37 milhões de euros — que se deixa de gastar.
O Direito foi usado neste caso como ferramenta de luxo para desacreditar a nova política de reutilização?
Tudo tem uma dimensão jurídica. Quando iniciei estas funções, algumas pessoas perguntaram: “O que é que um jurista faz no Ministério da Educação?”. Faz muito. Há medidas que não se conseguem tomar se não houver alguém com uma visão do ordenamento jurídico. Sem isso basta alguém acenar com uma proibição ou uma dúvida para as coisas pararem.
Mas Direito não é pedagogia. Não é num parecer jurídico que se analisam as implicações pedagógicas e de promoção do sucesso escolar. Não só reutilizar os manuais é constitucional, como poderá até acentuar-se uma outra dimensão constitucional, porque a gratuitidade do ensino prevista na Constituição impõe, também, a gratuitidade dos livros.