Sem-abrigo estão a organizar um encontro no Porto

A ajudá-los a organizar o evento, marcado para dia 6 de Dezembro, está a coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto.

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Um grupo de pessoas sem abrigo vai reunir-se esta sexta-feira no Museu Soares dos Reis Paulo Pimenta (arquivo)

Querem sentar gente com poder de decisão e à sua frente gente que a vida nalgum momento atirou para a rua. Parece-lhes que é tempo de encontrar soluções a partir de quem sabe o que é não ter aonde regressar ao final do dia, adormecer ao relento, despertar em sobressalto, inventariar comida.

A ideia despontou a 20 de Abril, num encontro sobre intervenção comunitária, o primeiro do ciclo “Vozes do Silêncio”, que se apresenta como uma forma de “diálogo entre artistas e pessoas em situação de sem abrigo”. No final da sessão, estava a coordenadora do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto (NPISA), Paula França, a dar uma entrevista, passaram por ela dois homens.

— Minha senhora, tudo o que aquela gente esteve para ali a falar é uma merda — terá comentado um.

— Não se aproveita nada? — perguntou ela, embaraçada.

— Devia pôr um sem-abrigo a falar. Os sem-abrigo é que sabem o que passam!

Os homens caminharam em direcção à comida, que começara a ser servida noutra sala da Associação de Comerciantes do Porto. Terminada a entrevista, a técnica do Centro Distrital de Segurança Social procurou-os, mas já não os encontrou. Virou-se para Vítor Santos, com um longo percurso de consumo de drogas e uma vasta experiência de vida de rua, só que ele não os conhecia. Nunca mais apareceram. A ideia de dar palco aos sem-abrigo, essa, estava lançada.

Vítor não se vê nas reuniões preparatórias. Não tem tempo. É educador de pares. Integra a equipa de rua da Associação para o Planeamento da Família, que faz troca de seringas na zona histórica. Conversou com Christian Georgescu, que como ele mora na comunidade de inserção Casa da Rua, da Santa Casa de Misericórdia do Porto. Desafiaram Paula França a ajudá-los a fazer um seminário na rua.

O seminário na rua morreu naquela primeira conversa. O que aí vem é um evento que junta artistas sem-abrigo e artistas integrados, como o realizador francês Christophe Bisson, que está a fazer um filme-documentário com e sobre sem-abrigo no Porto, ou a dupla de realizadores portugueses Duarte Guedes e Nuno Simões, que estão a fazer um filme-documentário sobre este ciclo.

Há semanas – quando discutiam sobre a informação a entregar aos transeuntes com uma flor de papel azul ou branca –, Paula França discorreu sobre a inclusão “através da linguagem universal da arte”. Está sempre nas reuniões, a assistente social. Está ela e Sandra Arouca, da Santa Casa da Misericórdia do Porto, e Alfredo Costa, da Universidade Católica, membros da rede interinstitucional constituída pela Segurança Social e por 64 entidades formais e informais de apoio aos sem-abrigo.

É a primeira vez que um evento desta natureza surge de baixo para cima, isto é, da rua para os técnicos e para quem toma as decisões que eles aplicam. O programa está delineado. Houve uma reunião aberta, no dia 5, no auditório da junta de freguesia de Santo Ildefonso, só para o discutir.

Poucos técnicos apareceram. E alguns sem-abrigo estavam mais interessados em discutir as fraquezas da Estratégia Nacional para a Integração dos Sem-Abrigo aprovada em 2009, depois de a União Europeia ter instigado os estados-membros a resolverem a situação dos sem-abrigo até 2015. “Guarde isso para dia 6”, pedia-lhes Paula França.

Na sala, ecoaram queixas sobre a “triagem”, o sistema montado para responder a quem está na rua e quer sair dela (ver texto). E sobre a distribuição de bens alimentares, assegurada por voluntários que em certas noites quase se atropelam para servir pessoas empobrecidas – algumas sem abrigo. Há noites fartas, em que se pode jantar duas ou três vezes, e noites de mingua, tardes de nada.

Houve um punhado de reuniões desde que tudo começou, em Julho. Uns sem-abrigo vieram a todas, outras a umas, outros a outras. Em cada reunião, juntaram-se caras novas e algumas  levantam questões já ultrapassadas.

Os feitios podem chocar. O estado de alguns pode estar alterado. A tensão pode subir. Um dia, a fazer flores, por pouco dois homens não desataram à porrada. Paula França até ficou com vontade de sair. Por valorizar o evento, vai ficando – a problematizar, a ajudar a encontrar soluções, a gerir conflitos.

São seis os membros da comissão eleita de braço no ar. Alfredo Martins, por exemplo, gosta de tomar nota do nome de todos os que participam nas reuniões – no início até queria número de bilhete de identidade, prova de que as presenças eram reais. António Ribeiro tira notas e faz as actas com uma letra muito direitinha. Pedro Silva nunca aparece – não consegue deixar de consumir drogas.

Cada um tem as suas razões para estar ali. “Eu entrei na comissão para as pessoas que têm experiência de rua terem uma oportunidade de falar, para as pessoas de cima saberem como é a vida das pessoas de baixo, para a vida melhorar”, diz Christian Georgescu. “É muito duro. Somos como papel de embrulho usado.”

“Há coisas que não funcionam”, diz Nuno Serrano, o sexto membro da comissão. Mesmo assim usa a palavra “gratidão”. Passou poucas noites na rua depois de ter saído de uma comunidade terapêutica sem ter quem o quisesse acolher. Acredita que lá estaria ainda, à chuva e ao frio, se a rede montada no Porto não tivesse funcionado. Foi posto num quarto de pensão. Aguardou duas semanas por um sítio certo para almoçar e jantar. “É preciso mais informação [sobre o sistema de triagem] e é preciso sensibilizar a sociedade para os problemas dos sem abrigo.”

Qualquer um pode ir parar à rua. Qualquer um. Basta, por exemplo, enlouquecer. Para quebrar a dicotomia “eles” e “nós”, Paula França lembra-o amiúde até aos voluntários que dobram a noite a distribuir comida ou abraços. 
 

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