Uma rede para tirar pessoas da rua
Apesar da sensação de desastre, há menos pessoas sem abrigo.
A Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem Abrigo, aprovada em 2009, aponta para a organização local. Sempre que o número de sem-abrigo justifique, deve constituir-se um Núcleo de Planeamento, Intervenção a Sem-Abrigo (NPISA) e delinear-se um conjunto de respostas integradas.
Há 17 NPISA. Alguns, como o de Vila Real, só existem no papel. Poucos vão além da articulação entre técnicos. O Instituto de Segurança Social nem consegue esclarecer quantos sem-abrigo acompanham. Mesmo lembrando que do plano consta “a promoção do conhecimento nesta área”, remete para dados de 2009.
Está a aumentar o número de pessoas sem tecto na União Europeia, diz Ruth Owen, da coordenação da Federação Europeia de Organizações que trabalham com sem-abrigo. Por força da crise, mas também de outros fenómenos, como a saída de doentes mentais das instituições.
Vários Estados-membros avançaram com regulamentos a proibir mendigar ou dormir ao relento. Ruth destaca o caso da Hungria, cuja lei prevê 600 euros de multa a quem é apanhado duas vezes em seis meses a dormir na rua – não a pagar é sujeitar-se à prisão. Mas também encontra exemplos positivos: “A Escócia assumiu um compromisso político forte – ninguém dorme na rua, a menos que queira”. A pessoa dirige-se às autoridades e estas têm de encontrar-lhe um lugar. Portugal aprovou uma estratégia. É pena, diz, “que mal tenha saído do papel”.
De acordo com a estratégia, ninguém deveria ter de permanecer na rua por mais de 24 horas. Existiriam centros de emergência – estruturas de resposta imediata, das quais se sairia, com um diagnóstico feito, para alojamento temporário ou permanente. Em lado algum foram criados.
No Porto, por exemplo, entendeu-se que chegam as 83 vagas da Associação de Albergues Nocturnos, apesar de nem sempre darem para as encomendas. Em vez de um centro de emergência, criou-se um serviço de triagem: um atendimento de primeira linha, assegurado, à vez, por técnicos de 12 organizações que fazem parte de uma rede que engloba 64 estruturas formais e informais.
As queixas podem suceder-se: o mapa de turnos não é conhecido por todos; a triagem não funciona ao fim-de-semana; de segunda a sexta, acontece quem está de turno não ser expedito. E a coordenadora reconhece falhas, sem deixar de contrapor: “Quem está sem abrigo não pode esperar um ou dois meses por um atendimento. Agora, pelo menos, é atendido no dia.”H
á cada vez mais voluntários como Fernando Salgueiro, da Abraço na Noite, grupo informal que sai de 15 em 15 dias, com 150 refeições completas e vontade de conversar e distribuir abraços, a tentar convencer quem está na rua a sair da rua. “Só a Segurança Social as pode tirar”, diz.
Há pessoas que estão há muito tempo a viver na rua. Ainda há pouco Fernando lidou com um que afiançava querer sair e voltou atrás. Alguns só acreditam se forem levados até ao quarto. Uns nem por lá aparecem. E é preciso o técnico mandar um e-mail aos parceiros, a pedir que avisem se o encontrarem.
Acontece correr mal. Durante a triagem, o técnico traça um pré-diagnóstico e encaminha para um albergue ou para uma pensão. Trinta ou 60 minutos de conversa pode ser pouco. A pessoa pode ter uma perturbação mental ou uma dependência severa e não fazer qualquer referência a isso. Não é tudo: o albergue pode ser o mais indicado e estar lotado. Um quarto de pensão pode ser mais aconselhável e não haver verba. Só que tudo isso, vai reiterando a coordenadora, uma e outra vez, se pode rever.
A cada sem-abrigo é atribuído um gestor de caso. Há 42 oriundos de 25 estruturas, alguns enfadados com a burocracia que os obriga a sair do seu posto de trabalho e a ir à Segurança Social inserir dados – não aprenderam ainda a trabalhar com a aplicação informática. Cabe-lhe acompanhar a pessoa sempre. Quis-se, com este modelo, introduzir uma componente de afecto.
Apesar da sensação de achaque, o balanço é positivo: em 2009, havia 2715 pessoas a pernoitar nas ruas do Porto, em sítios precários ou em alojamento temporário; no final do ano passado, quando fizeram a última estatística, estavam a ser acompanhadas 1377. Na rua mesmo, persistiam 222.
Agora, a lista do NPISA-Porto está em 1113. Em Outubro, nas rondas pela cidade, membros da Plataforma de Organizações Voluntárias registam 47 pessoas a dormir nas ruas, mas não entraram em bairros nem em fábricas ocupadas. A coordenadora estima que existam umas 200 pessoas nessa situação. Só numa fábrica à entrada do Bairro de Pinheiro Torres estão mais de 50.
Parece que o assunto fica arrumado com o alojamento, protesta António Ribeiro, membro da comissão de organização do encontro que se realiza esta sexta-feira no Porto. Uma das maiores dores de cabeça é encontrar lugar no mercado de trabalho. O homem está com 63 anos e a sensação de que foi sentenciado.
Uma plataforma para o emprego
Chama-se Plataforma + emprego o grupo de trabalho que procura estabelecer pontes entre o mundo dos sem-abrigo e o mundo empresarial. Está tudo a começar, resume Alfredo Costa, coordenador do Welcome.
Passam horas a analisar currículos, a avaliar as possibilidades de empregabilidade, a procurar ou a criar oportunidades. Já identificaram umas 20 pessoas com perfil de empregabilidade. Deverão ir seis trabalhar para uma rede de padarias que se está a expandir na cidade. A aposta parece segura a Alfredo Costa. Serão todos acompanhados pelo respectivo técnico social e pelos membros da plataforma. E isso deverá facilitar a integração, diminuir o absentismo, aumentar a produtividade.
Está a ser o cabo dos trabalhos abrir caminho no mercado laboral. Às empresas explicam que têm incentivos públicos para contratar pessoas com experiência de rua, agora com alojamento temporário ou permanente. E que podem ganhar alguma visibilidade com tal prova de responsabilidade social.
Criaram formação específica. Nesta altura, estão cinco pessoas a fazer uma curta formação de guias da cidade do Porto. Já antes saiu um grupo de seis da chamada Rota da Mudança, um programa inspirado no Unseen Tour de Londres e o Utrecht Underground da Holanda, uma iniciativa da Welcome, que faz parte da Universidade Católica do Porto. Assumindo que os sem-abrigo conhecem bem a cidade e que podem revelar uma “perspectiva surpreendente”, dão-lhe uma curta formação.