Saúde mental: descontinuação e desintegração de cuidados
Estamos a retroceder ao não falarmos de cuidados continuados integrados de saúde mental como um todo.
O Dia Mundial da Saúde Mental assinalou-se este ano sob o lema "Dignidade na Saúde Mental". Excelente mote para se falar dos Cuidados Continuados Integrados em Saúde Mental (CCISM).
Portugal tem, no papel, um excelente Plano Nacional de Saúde Mental 2007 -2016, que integra o pequeno grupo dos programas "prioritários" da Direção Geral de Saúde (DGS).
O Decreto-Lei 8/2010, de 28 de janeiro, determina a criação de "estruturas multidisciplinares de cuidados continuados integrados de saúde mental, adaptadas às características de grupos etários específicos, (...) passando a prestação de cuidados de saúde mental a ser assegurada por equipas e unidades multidisciplinares habilitadas a responder, de forma coordenada, aos aspetos médicos psicológicos, sociais, de enfermagem e de reabilitação".
Além da definição de cuidados continuados integrados de saúde mental – “conjunto de intervenções sequenciais de saúde mental e ou de apoio social, decorrente de avaliação conjunta, centrado na reabilitação e recuperação das pessoas com incapacidade psicossocial, entendida como o processo de reabilitação e de apoio social, ativo e contínuo, que visa a promoção da autonomia e a melhoria da funcionalidade da pessoa em situação de dependência com vista à sua integração familiar e social” –, o referido articulado legal operacionaliza um conjunto de estruturas a serem criadas, com especificidades próprias para dar resposta às diferentes necessidades, mantidas na sua revisão posterior (Decreto-Lei 22/2011), cujo artigo 1.º diz "1 – O presente decreto -lei cria um conjunto de unidades e equipas de cuidados continuados integrados de saúde mental, destinado às pessoas com doença mental grave de que resulte incapacidade psicossocial e que se encontrem em situação de dependência, independentemente da idade, adiante designadas como pessoas com incapacidade psicossocial. 2 – O referido conjunto de unidades e equipas de cuidados continuados integrados específicas de saúde mental, inclui unidades residenciais, unidades sócio ocupacionais e equipas de apoio domiciliário, e articula -se com os serviços locais de saúde mental (SLSM) e com a rede nacional de cuidados continuados integrados (RNCCI)."
Tudo isto ficou na gaveta durante cinco anos surgindo, muito recentemente, legislação que, não tendo revogado a anterior, é a descontinuação e desintegração dos (inexistentes) cuidados continuados integrados de saúde mental ou, dito de outra maneira, é a opção política pela inexistência de cuidados continuados integrados de saúde mental.
Leal da Costa dizia ao jornal Expresso, em setembro, que "é preciso ter honestidade na discussão deste problema e admitir que existirá sempre uma população que não foi por encerrar os hospitais psiquiátricos que desapareceu, pessoas com doença mental grave que necessitarão de apoio residencial. As tentativas de desinstitucionalização sem retaguarda, confiando em famílias inexistentes ou indisponíveis, levaram ao agravamento de fenómenos como o dos sem-abrigo."
Concordo em absoluto, "é preciso ter honestidade na discussão deste problema". Vamos a isso.
Assumir que sempre existirá uma franja de doentes mentais que necessitam de residências de apoio máximo (ou mesmo moderado) é uma verdade incontestável, daí essa solução estar prevista mas não ser a única – nem, do meu ponto de vista, a que responde pela maioria das necessidades.
Já achar, e defender, que o "agravamento de fenómenos como o dos sem-abrigo" se deveu à desinstitucionalização e não à forte crise económica que vivemos é demagogia e "inverdade", para dizer o mínimo. A maioria das famílias não estão "indisponíveis", não têm é recursos nem saber, o que é substancialmente diferente. E mais, se as alternativas de “retaguarda” à desinstitucionalização não surgiram ao governo se deve, e a Leal da Costa como seu membro, a lei inicial tem mais de cinco anos.
Por ser necessário honestidade importa assumir que, com as recentes determinações legais, (a) estamos a tentar dar resposta aos sem-abrigo com patologia mental; (b) estamos a falar de apoios sociais básicos – cama, comida e roupa lavada; (c) a opção é mais caritativa que solidária e que não é clínica; (d) estamos a fazer opções económicas erradas, porque piores e mais caras, e muito questionáveis em termos da sua seriedade; (e) estamos a ir contra lei naquilo que é a sua determinação da necessidade de uma articulação com “os serviços locais de saúde mental (SLSM) e com a rede nacional de cuidados continuados integrados (RNCCI)"; e (e) não estamos a falar de cuidados continuados integrados de saúde mental como um todo e como são (internacionalmente) discutidos e conceptualizados. Nessa perspetiva, estamos a retroceder, sim.
Termino com as palavras do psiquiatra Fidalgo de Freitas ao jornal PÚBLICO a 14 de setembro último, “Além do “desrespeito pelas instituições particulares de solidariedade social, que há anos têm trabalho nesta área”, o médico nota que muitas unidades são no interior do país, Soure, Ponte de Lima, Pinhel, todas com “residências de apoio máximo”. “Não consta que haja assim tantos doentes mentais nestas áreas, o que significa que os doentes vão ser levados para lá. É um regresso aos asilos, só que mais bonitos por fora.”. Tenho uma importante discordância com ele, duvido que os novos asilos (ou serão os verdadeiros asilos?) sejam “mais bonitos por fora” que os anteriores.
Médica psiquiatra. Directora do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo