Educação pública e privada
Discordo da estratégia de alarme social protagonizada por alguns dos representantes dos interesses particulares no “mercado da Educação”.
Levantou-se em alguma imprensa e num punhado de concelhos algum alarido em torno do anúncio do Ministério da Educação de que iria ser feita uma avaliação da necessidade de manter alguns contratos de associação com estabelecimentos privados de ensino para evitar duplicação da oferta com financiamento do estado, não se renovando aqueles que, chegando ao seu termo, se considerassem desnecessários. Este é o tipo de medida que se enquadra numa lógica existente nesta área da governação de racionalizar os encargos e de adaptar a oferta às necessidades de prestação de serviço público. Uma lógica que predomina a gestão educacional há mais de uma década e com a qual estou em desacordo em alguns pontos, mas não necessariamente neste, passando a explicar de forma resumida porque discordo da estratégia de alarme social protagonizada por alguns dos representantes destes interesses particulares no “mercado da Educação”.
Ao longo dos últimos anos assistimos ao encerramento de milhares de escolas públicas do 1.º ciclo e à concentração da rede escolar em unidades de gestão, com o pretexto de racionalizar os encargos orçamentais, assim como a carreira do pessoal docente e não docente foi congelada, sendo ainda os salários objecto de cortes que, com mais ou menos semântica, parecem permanentes quando se olha para o recibo mensal. Isso permitiu que os gastos com o ensino público (básico e secundário, sem pré-escolar) descessem de 4822506,6 euros em 2011 para 3702132,3 em 2012 e só voltassem a subir para 3855226,3 em 2015 graças ao aumento das verbas para “projectos”. Um milhão de euros a menos, quase 20% de perdas de 2011 para 2015. Já no caso das transferências para o ensino particular e cooperativo, em 2012 o valor previsto era de perto de 200 milhões de euros, enquanto a execução de 2015 levou esse valor para quase 240 M€, fruto de acordos de última hora com o governo PSD/CDS. Este valor, para 2016, ficou previsto acima dos 250 M€, o que significa um acréscimo de 25% neste período, algo que não é revelado à opinião pública em cordões humanos e intervenções pesarosas do director executivo da AEEP que sempre ouvi afirmar-se favorável ao rigor na utilização dos dinheiros públicos. Parece ter um curioso duplo padrão nessa posição, mas não estranho e compreendo-o. Como compreendo que, para as escolas com contrato de associação, algumas pessoas deixem o “argumento demográfico” na gaveta. Ou que agora se revele um apreço pelo respeito pelos contratos firmados e direitos adquiridos que, quando se tratava de outros, se qualificavam como “privilégios corporativistas”.
Um segundo aspecto, que é muito referido na defesa dos contratos de associação, mesmo em zonas onde as escolas públicas podem absorver os alunos sem encargos adicionais, é que as escolas privadas prestam um “melhor serviço” e que as famílias devem ter “liberdade para escolher”. A liberdade que, é bem verdade, desapareceu na rede pública quando se procedeu a concentrações disparatadas de escolas numa mesma “unidade” e num único projecto educativo. A este respeito, eu gostaria que me explicassem o que é “melhor”, se apenas se baseia em resultados em exames ou se vai mais além em serviços prestados aos alunos sem custos adicionais. E se esse “melhor” é conseguido com a aplicação das mesmas regras das escolas públicas ou se a sua forma de funcionamento é bastante diferente, beneficiando de uma flexibilidade que não é permitida às escolas públicas. Em alguns casos, pressinto que o “melhor” surge logo associado à designação “colégio”, mas pode ser preconceito meu, habituado a “escolas básicas e secundárias”. Como pressinto que a gestão das turmas em alguns destes estabelecimentos não prima pelo culto da “diversidade” que caracteriza as escolas públicas de acesso universal.
Um terceiro ponto passa pela inexistência em Portugal de mecanismos de regulação real e não meramente burocrática da actividade destes estabelecimentos de ensino, nomeadamente em relação aos encargos reais com as turmas contratualizadas e a utilização das verbas recebidas. Como a generalidade dos defensores da liberdade de escolha saberá, em países como a Holanda o apoio do Estado à gestão privada implica que não sejam gerados lucros a distribuir pelos administradores ou accionistas do que não é uma empresa. Por cá, pouco sabemos acerca disto e as inspecções e o que sei sobre as práticas de proletarização do pessoal docente e não docente em alguns destes “colégios” foi-me dito por directores de escolas assumidamente privadas, que lamentam a concorrência desleal patrocinada por acordos com o Estado sem a devida fiscalização.
Gostaria de terminar este texto com dois pontos que se podem considerar menores em todo este cenário, mas que têm o seu simbolismo. É paradoxal que quem criticou, e facturou em seu favor, a “instabilidade” das escolas públicas sempre que os professores (coisa de 100.000) protestaram em defesa dos seus direitos, surja agora com um indesmentível histrionismo na sua mobilização, arregimentando crianças e jovens para iniciativas “de luta” que, quase por certo, é incompatível com a estabilidade requerida por um final do ano lectivo. Por outro lado, não deixa de ser curioso que na primeira iniciativa pública de contestação às medidas anunciadas, um grupo de 300 defensores da “liberdade” tenham ferido um agente da autoridade, dando um péssimo exemplo à sociedade das suas qualidades cívicas, um pouco à imagem do que fazem com a sua coerência quanto à racionalização do uso dos dinheiros públicos.
Professor do 2.º ciclo do Ensino Básico