Ciganos: há vida para além da feira

A ciganofobia está mais visível, mas há um caminho pela integração e contra a discriminação que está a ser percorrido. Até quinta-feira, na Reitoria da Universidade do Porto, 20 retratos tentam desmistificar o plural “ciganos”.

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Cristina Vicente, da Trafaria, 43 anos, é auxiliar de serviços gerais Sérgio Aires

“Devem olhar para os ciganos com olhos de ver e não com os preconceitos que têm. Devem partir do pressuposto que o cigano é também uma pessoa e que não é apenas isso [a etnia] que o define.” Palavras de Damaris Maia, 20 anos, a frequentar o curso de Bioquímica na Universidade de Aveiro. 

O seu rosto está na exposição fotográfica de Sérgio Aires Singular do Plural, patente na Reitoria da Universidade do Porto até quinta-feira, 30 de Junho. E no livro com o mesmo nome, a par da sua história, escrita por Maria José Vicente. Integra um conjunto de retratos que tenta desmistificar o plural “ciganos”.

Há mais de dez anos que, dentro da EAPN – Rede Europeia Antipobreza-Portugal, os sociólogos Sérgio Aires e Maria José Vicente falavam na necessidade de desconstruir os estereótipos negativos. No decurso do trabalho que desenvolvem, vão conhecendo ciganos portugueses que, remando contra ventos e marés, cumprem percursos de escolarização e de formação, mas não encontram porta alguma aberta para o mercado de trabalho e, por isso, parecem condenados a uma vida de pobreza e de exclusão.

É abusiva a generalização de que os ciganos portugueses vivem de prestações sociais e/ou tráfico de droga, comenta Manuel Carlos Silva, investigador da Universidade do Minho. A maior parte vive do seu trabalho. Persiste a tradicional aposta no elevado número de filhos e no seu encaminhamento para a venda ambulante. A realidade, porém, é diversa.

Foi para tentar desfazer a ideia de comunidade homogénea que a EAPN-Portugal lançou em Abril uma campanha com o lema Discriminação é falta de educação: um curto vídeo de Miguel Januário, com sete fotografias de Sérgio Aires, cada uma de um cigano português que estuda ou trabalha. Já em Junho, inaugurou a exposição fotográfica e lançou o livro não com sete, mas com 20 retratos de pessoas com actividades profissionais diferentes.

Carlos Miguel, de Torres Vedras, 59 anos, secretário de Estado das autarquias locais. Cátia Montes, de São Brás de Alportel, 28 anos, bombeira voluntária e operadora de supermercado. Alexandrino Navarro, do Porto, 39 anos, chefe de segurança num centro comercial. Cristina Vicente, da Trafaria, 43 anos, auxiliar de serviços gerais. Bruno Oliveira, de Lisboa, 32 anos, assistente operacional. Olga Mariano, do Seixal, 65 anos, dirigente associativa.

Homens, mulheres, do interior, do litoral, do meio urbano, do meio rural, de várias idades, com baixa escolaridade, com escolaridade média, com escolaridade superior. Primeiro, Sérgio Aires fotografou as pessoas com fundo neutro, de frente, como que “a questionar com o olhar o porquê de tanto ódio”. Depois, no ambiente de estudo ou trabalho, como que a dizer: “Pensem bem, não somos esse plural assassino, somos diversos como os outros portugueses; se algo impede que sejamos mais iguais aos outros é a discriminação.”

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Damaris Maia, 20 anos, aluna do 2.º ano do curso de Bioquímica na Universidade de Aveiro Sérgio Aires

“O cigano já está definido como aquela pessoa que vai apenas até ao 4.º ano, que não vai à escola, que não estuda, que trabalha nas feiras, que vive em barracas”, comenta, no livro, Damaris Maia, a aluna do 2.º ano do curso de Bioquímica de que falámos no início deste texto. “Existem ciganos que, com muitos esforços pessoais e colectivos, estão incluídos na sociedade.”

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Alexandrino Navarro, 39 anos, chefe de segurança num centro comercial Sérgio Aires

Foram sinalizadas “muitas mais pessoas”, revela Maria José Vicente. Recuaram ao ouvir falar em fotografia. Tiveram medo. Na sua escola ou no seu local de trabalho, nem toda a gente conheceria a sua etnia. Quem sabe como reagiriam os colegas ou os superiores hierárquicos ou o senhorio?

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Bruno Oliveira, 32 anos, assistente operacional Sérgio Aires

Não engolimos sapos

O actual secretário de Estado das autarquias locais já perdeu a conta à quantidade de vezes que lhe disseram que não precisa de dizer que é cigano e que teve de explicar o quão importante é fazê-lo. Os ciganos portugueses, diz, “são vistos com a reserva e a desconfiança próprias do desconhecimento e do preconceito”. Importa “investir mais na sua formação académica e profissional ao mesmo tempo que se aposta numa rede nacional de criação de emprego”.

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Olga Mariano, 65 anos, dirigente associativa Sérgio Aires

Não se esgota no labor a ideia negativa que os portugueses não ciganos têm dos portugueses ciganos. Tendem a vê-los como “impulsivos, mentirosos/falsos, vingativos, agressivos, preguiçosos, maliciosos, desonestos e selvagens”, resume Sílvia Gomes, do Observatório das Comunidades Ciganas.

Na opinião daquela socióloga, a ciganofobia está hoje mais visível. Além do despudor patente nas redes sociais e nas caixas de comentários dos órgãos de comunicação social, parece-lhe “sintomático” o que aconteceu na sequência do aplaudido documentário Balada de um Batráquio, de Leonor Teles.

A referida curta-metragem denuncia o uso de sapos de louça em estabelecimentos comerciais para afugentar ciganos. O seu sucesso não suscitou uma diminuição, mas um aumento de tal estratégia. “Isso é muito evidente em cidades como Braga”, diz Sílvia Gomes. Dir-se-ia que o documentário serviu para alertar, mas também para divulgar uma arma de promoção da discriminação.

O fotógrafo Rui Farinha já andava inquieto com tal prática, que lhe chegou aos ouvidos no ano passado, durante uma formação para jornalistas promovida pelo Institudo Universitário da Maia e financiada pelo Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, gerido pelo Alto Comissariado para as Migrações (ACM). Aliou-se ao SOS-Racismo para preparar um projecto, o Não engolimos sapos, financiado pelo mesmo fundo. Nos dias 18 e 19 de Junho, houve uma reunião com 20 mediadores ciganos residentes em várias partes do país. A ideia é identificar comerciantes que usam sapos de louça e tentar demovê-los. 

“Estamos a viver um bom momento, apesar de tudo”, afiança Bruno Gonçalves, vice-presidente da Letras Nómadas, uma das mais activas associações ciganas, um dos fotografados por Sérgio Aires e entrevistados por Maria José Vicente. “Há um caminho que está a ser percorrido connosco e não por nós”, prossegue. Pela integração e contra a discriminação.

O envolvimento dos ciganos é uma exigência da Comissão Europeia, que incitou à criação de estratégias de integração em toda a União. Serve para responsabilizar os ciganos pelo seu próprio processo. E para quebrar a ideia generalizada entre não ciganos de que os ciganos não se querem integrar.

Sinais de mudança

Ganha força o movimento associativo entre ciganos portugueses. As associações que surgiram no pós-25 de Abril de 1974 tinham lideranças muito personalizadas. “Tudo girava à volta de uma pessoa. Neste momento, há associações que funcionam como colectivos e que têm como representantes não apenas homens, mas também mulheres”, analisa Sílvia Gomes.

“Não havia uma tradição associativa”, lembra Bruno Gonçalves. “Agora, é diferente. O ACM tem financiado vários programas de capacitação para a intervenção comunitária. Temos cada vez mais jovens preparados.” Podem elaborar um projecto, fazer uma parceria, participar num projecto alheio. 

Ocorre-lhe o exemplo do Programa Europeu de Formação para Mediadores Ciganos. Houve uma fornada em 2009 e outra em 2013 que resultaram em 17 mediadores culturais. Findo o período experimental, em que o Estado central suportava as despesas, apenas três câmaras os mantiveram a trabalhar.

A secretária de Estado da Cidadania e da Igualdade, Catarina Marcelino, fala na “canalização de fundos comunitários previstos para 50 mediadores municipais, que privilegiem a mediação entre a escola, a família e a comunidade cigana com o objectivo de prevenir o abandono escolar das crianças ciganas, em particular das raparigas”. Não adianta, porém, quando.

A governante congratula-se com o “surgimento de novas organizações constituídas por pessoas ciganas que têm como principal objectivo a integração social e a valorização da cultura cigana”. As políticas públicas podem agora “ser influenciadas quer pelas necessidades reportadas, quer pela adequação à realidade”.

“O Fundo de Apoio à Estratégia Nacional vem dar um suporte a esta nova realidade a que estamos a assistir”, considera. “Em 2015, foram alvo dos apoios financeiros [no valor total de 50 mil euros] 11 organizações, duas das quais ciganas. Em 2016, conscientes de que era necessário ampliar este fundo experimental, duplicámos a dotação para 100 mil euros, tendo sido possível apoiar 21 organizações, quatro das quais ciganas”, esclarece.

Diz-se empenhada em potenciar o trabalho feito. O ACM irá, por exemplo, apoiar a reedição do livro Singular do Plural, no qual assina o prefácio. E criar um programa público de atribuição de bolsas para estimular a frequência universitária dos jovens ciganos, inspirado na metodologia desenvolvida pelo Opré Chavalé, um projecto promovido pela Plataforma pelos Direitos das Mulheres em parceria com a Letras Nómadas.

Dar visibilidade aos bons exemplos, sublinha Bruno Gonçalves, pode ajudar até a abrir a mentalidade dos ciganos portugueses. Mostrar-lhes que há vida para lá das feiras, que não estão fadados a uma existência de pobreza e de exclusão. 

Há outros sinais de mudança. Grupos informais estão a funcionar em sete municípios: Barcelos, Figueira da Foz, Seixal, Torres Vedras, Elvas, Moura, Beja. Definem prioridades para a respectiva comunidade e tentam encontrar soluções. Na Figueira da Foz, exemplifica Bruno Gonçalves, o grupo definiu como prioridade o emprego. Contactou a câmara no sentido de garantir três contratos emprego inserção +, modalidade de trabalho para desempregados subsidiados. Obteve seis: três para mulheres e três para homens.

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