A paixão pequena
A paixão anda muito diminuída. Mas é a diminuição que ficará. Que pena.
A combinação de dois grandes escritores – os apaixonados Kraus e Wittgenstein – ensinou-me a preparar-me para (mais do que meramente temer) a degradação das palavras.
É não só escusado como inútil e analfabeto dizer que uma das palavras que usei no parágrafo anterior (o adjectivo apaixonados e, por conseguinte, o substantivo paixão) já não quer dizer o que dantes queria.
A linguística – tal como a lembrança de Wittgenstein segundo a qual o significado de uma palavra está na maneira como é usada – mostra que as palavras vão mudando conforme os utentes a vão usando.
A palavra paixão é hoje usada para todas as dedicações, incluindo as mais frouxas, fúteis e comerciais. Daqui a pouco tempo a palavra perderá o sentido lunático que uma vez teve e adquirirá (temporariamente também, valha-nos ao menos isso) o significado de uma ligeira propensão.
A palavra paixão perdeu-se (ou encontrou-se, aliviando-se) mas sabe bem ter saudades do que queria dizer, quando era extremista e louca.
Diz a 7.ª edição do Dicionário de Língua Portuguesa da Porto Editora, publicada em 1994, que paixão é “tendência dominante, ou mesmo dominadora e geralmente exclusiva, que exerce, de modo mais ou menos constante, acção directora sobre a conduta e o pensamento (...), amor ardente (...), grande desgosto (...), tendência exaltada, exclusiva, absorvente e duradoira; martírio de Cristo (...)”
Pois é. A paixão anda muito diminuída. Mas é a diminuição que ficará. Que pena.