Ir ao Porto
Fazer parte de uma cidade e amá-la não significa conhecê-la por inteiro, à primeira vista. Há que a ir saboreando devagar e deixar que ela vá mudando connosco. E garantirmos, assim, que ela tem sempre algo de novo para nos contar.
Ir ao Porto costumava ser uma aventura, algo que acontecia só em ocasiões especiais. Para ir comprar o par de botas para o Inverno ou uma peça de roupa nova nos Porfírios. Significava acordar muito cedo, com o entusiasmo a saltar de todos os poros e experimentar, sem refilar, o ar gelado que se colava à pele do rosto, no trajecto entre casa e a paragem do autocarro. Devia ir mais ao Porto no Inverno, porque o frio aparece sempre associado a estas viagens, feitas no autocarro que ia enchendo até ficar repleto de pessoas que se acotovelavam entre si, tagarelando sem parar.
Nessa altura, ir ao Porto significava abandonar o transporte na Praça da República e caminhar até à Praça de Carlos Alberto com a minha irmã mais velha a levar-me pela mão, indo ao encontro de outra das minhas irmãs, que trabalhava na Manteigaria Vianeza. A visita rápida, e às vezes brindada com um chocolate Regina, estava colada à pausa num café para o pequeno-almoço. Ir ao Porto era também ir ao café, comer um bolo e beber leite em copos de vidro armados de uma pega metálica, que nos impedia de queimar os dedos. Depois, seguíamos para a Rua de Santa Catarina, o nosso destino final. Porque ir ao Porto era ir às compras. Ir a Santa Catarina. E à confeitaria.
Quando fui para a faculdade, o Porto passou a ser também um local de partida e de chegada. Era dali, bem perto da Torre dos Clérigos, que partia a camioneta da Renex que me levaria, pela A1 fora, durante três horas e meia, até ao Campo das Cebolas, em Lisboa. Nesses anos de idas e regressos, o Porto era um conjunto de ruas que cruzava, rápida, muitas vezes sem que o sol tivesse nascido ainda, carregada com o saco de roupa que teria de dar para uma semana. Ou o local que se espraiava a meus pés, quando a camioneta atravessava uma das suas pontes, no regresso, à sexta-feira, e eu sentia que, finalmente, estava em casa.
Foi preciso um estágio no Jornal de Letras para verdadeiramente começar a olhar o Porto. A culpa foi do meu editor, José Manuel Rodrigues da Silva, a quem a palavra Porto se enrolava, sedutora, nos lábios e deixava um brilho guloso no olhar. Ele amava a minha cidade — os hotéis com quiosques dentro, os alfarrabistas, as ruas estreitas no seu constante sobe e desce, o granito molhado pela chuva. Por causa dele, comecei a levantar os olhos para os edifícios da Baixa. A embrenhar-me pela Rua das Flores, a deixar que a cidade, finalmente, se entranhasse naquilo que sou e a chamá-la minha.
O trabalho ofereceu-me um Porto diferente. Saltitei entre o Largo da Paz, na zona da Boavista, a Rua de Fernandes Tomás, em plena Baixa, a Rua de João de Barros, na encruzilhada de um bairro social e a zona alta da Foz, e a Praça do Coronel Pacheco, ao ladinho da Rua de Cedofeita. A cidade mostrou-me, então, tudo o que vale. Os sítios novos em folha, dos dias das inaugurações, as entranhas de instituições que só conhecia pela fachada, os bairros sociais em que muitos portuenses nunca puseram um pé, as ilhas escondidas por trás de um portão incaracterístico, os seus cemitérios e bibliotecas, os mercados, as ruas que parecem transplantadas de uma qualquer aldeia, os teatros e cafés.
Ir ao Porto, hoje, é chegar a um sítio que sei que nunca conhecerei por inteiro. Porque há sempre uma rua que nunca cruzei, um miradouro que ainda não espreitei, uma esplanada onde ainda não experimentei deixar-me embalar pelo sol, uma mulher velha e de mãos na anca com quem não conversei. Mas é também o conforto de algo que já faz parte de mim, que posso percorrer sem receio de me perder, porque hei-de sempre encontrar-me e, com sorte, encontrar algum novo recanto encantador. Estas crónicas acabam agora (ou fazem só uma pausa, logo se vê), mas o Porto continua aqui. E enquanto houver cidade, não há por que dizer adeus.