A essência de Portugal
Talvez Pedro Mexia possa instigar o Presidente a um debate nacional. Mas ajudaria prescindir de tanta identidade e tanta míngua de questões.
A essência de Portugal é não ter essência alguma. Como formação social, o nosso país, como qualquer outro, vive de processos e dinâmicas sociais, uns mais sujeitos a inércia, outros propensos a mudanças, aqueles instaurando-se na longa duração, estes cavalgando nos eventos e criando uma contemporaneidade que é sempre provisória e ultrapassada. Cito de cor Ruy Belo: “Cruzámos nossos olhos em alguma esquina / demos civicamente os bons dias:/chamar-nos-ão vais ver contemporâneos”. Ser contemporâneo é poder apropriar (isto é, interpretar e modificar) as heranças culturais, mesmo as mais cristalizadas em memória coletiva, e ter a possibilidade de lutar pelo seu sentido. Se partilhamos uma matriz histórico-geográfica, fazemo-lo a partir de pontos de inserção distintos na sociedade (classe, género, etnia, grupos de referência…). Por outras palavras, não há significados fixos e pré-determinados sobre o que é o cariz distintivo de Portugal ou dos portugueses. Há um jogo e uma luta, constantes, que tanto podem ser sincrónicos (como as que opõem as classes sociais, num dado momento das formações sociais), como diacrónicos (o que permanece ou se esvai do tempo que passa é também um conflito dos fazedores de memória: historiadores, jornalistas, cronistas…). Viver o momento presente é, pois, coabitar com assincronismos, tempos díspares mas justapostos, e habitar os três modos de um mesmo tempo, como Santo Agostinho identificou: “O presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas passadas”. Tempos sempre cruzados, por isso, dificultando qualquer simplismo.
O que define preferencialmente Portugal, a crença messiânica no Quinto Império ou o ceticismo dos "Vencidos da Vida"? A narrativa dos brandos costumes ou a matança dos judeus de 1506? A "generosidade humanista" ou os massacres coloniais, como o de Wiriamu, ainda na década de 70? A Nação de "poetas" ou o país de "soldados"? A religiosidade popular que o Estado Novo comandou a partir dos “milagres” (Ourique, Fátima) ou o país que legislou sobre o casamento homossexual e a adoção sem restrição? A opção por qualquer um dos termos será sempre insuficiente e mesquinha. Quando o presidente diz "Aqui se criaram e sempre viverão comigo aqueles sentimentos que não sabemos definir, mas que nos ligam a todos os Portugueses. Amor à terra, saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na inclusão, crença em milagres de Ourique, heroísmo nos instantes decisivos", o que quer dizer o Presidente? Respondo: quer participar, a partir de um ligar de autoridade, isto é, de força e legitimidade, na definição conveniente do que é essa inexistência chamada “espírito” da Nação. E fá-lo invocando as suas memórias de infância e adolescência, a sua socialização por um imaginário nacionalista e devedor de uma configuração de “humanismo” personalista, vincadamente católico. É a sua interpretação do país e diz mais dele do que da Nação.
Os mitos são sempre aquém e além do que necessitamos. Explicam-se a si mesmos, devoram-se na tautologia. Eu sei que sou português de hoje e de aqui, nada mais. Mas isso para mim não é um dado, é um problema. Talvez Pedro Mexia possa instigar o Presidente a um debate nacional, certamente estimulante embora provavelmente inglório, sobre esta temática. Mas ajudaria prescindir de tanta identidade e tanta míngua de questões. Relembro Alexandre O’Neill: “Portugal, questão que eu tenho comigo mesmo”. Ajudaria se socializássemos a pergunta: Portugal, questão que faremos uns aos outros.
Sociólogo, militante do Bloco de Esquerda