A comunicação social, ela que...
Falo de uma comunicação social que em geral peca por transmitir maioritariamente uma provinciana ideia deprimente de um Portugal decadente, desordenado, inapto, reles, em constante declínio.
Que me perdoe o excelente periódico que me tolera nas suas páginas, mas há muito que tenho para mim que a comunicação social tem sido das coisas mais nocivas e que mais tem contribuído para o ambiente de desalento da sociedade portuguesa. Não falo dos tablóides que pululam mais ou menos por todo o Mundo e têm ao menos a vantagem de sabermos que devemos estar de pé atrás com o que publicam. Nem da imprensa escrita de referência, que mantém qualidade apesar de ceder a alguns pecados, como o de nem sempre verificar cabalmente notícias, de se deixar levar por certas fontes que veiculam informação interessada ou de nem sempre ser clara a explicitar as suas tendências.
Falo de uma comunicação social que em geral peca por transmitir maioritariamente uma provinciana ideia deprimente de um Portugal decadente, desordenado, inapto, reles, em constante declínio, num período do último meio século que não hesito em classificar como o melhor da nossa História, seguramente para a esmagadora maioria dos portugueses, como qualquer pessoa com umas décadas de vida pode constatar. Veja-se por exemplo a excelente série de televisão que António Barreto há uns anos produziu sobre a evolução do País desde 1974.
Dou um exemplo deste deleite em transmitir notícias negativas para o País. Aí pelo início deste século, Portugal subiu quatro lugares no índice de desenvolvimento global do PNUD. A notícia, na primeira página de um jornal diário, era o único critério em que tínhamos descido um ponto. O resto estava escondido nas páginas interiores.
Falo também dos inúmeros comentadores que nos jornais, na rádio, na TV dizem enormidades sobre assuntos de que não têm a mais leve ideia, desde logo, para falar da área em que tenho experiência, sobre o funcionamento da Administração Pública, da política externa e até da União Europeia, pese embora aí haver um excelente escol de peritos cuja esclarecedora informação esses comentadores preferem ignorar.
Mas falo sobretudo da rádio e da televisão, que se comprazem a praticar uma pretensa informação sensacionalista que logo se traveste numa informação que, mais que alarmista, eu diria histérica. Desde logo, no caso da TV, com telejornais longuíssimos assentes em notícias deletérias onde se insiste na mesma notícia mais de meia hora, sempre num tom pessimista e demolidor. Telejornais em que alguns – felizmente raros – pivots se permitem fazer expressões e dar entoações ao que dizem, não transmitindo a notícia de modo objectivo, mas com a sua valorização pessoal, muitas vezes politizada.
Intermináveis telejornais, que se arrastam por tanto tempo em cada notícia, que se muda de canal e quando meia hora depois se volta ao mesmo ainda por lá anda, com os inúmeros correspondentes - tantos e tão diferentes todos os dias que devo ser dos poucos cidadãos que não é correspondente de nenhum canal televisivo – a repetirem-se à exaustão, transmitindo num patético tom alarmista a ementa do pequeno-almoço da selecção nacional ou insistindo com os transeuntes para que estejam indignados por ter ocorrido um qualquer incidente cuja responsabilidade logo se procura atribuir a alguém, de preferência o Estado ou, melhor ainda, um político até então com boa imagem. Telejornais demolidores do ambiente social.
Um amigo meu dizia que o telejornal em Portugal era uma mulher a dizer aos berros, em aterrador tom de pânico, que a notícia do dia era que não havia notícia nenhuma. Recordo uma ocasião em que, vivendo eu em Bruxelas, houve grandes inundações na Holanda e na Flandres que obrigaram à deslocalização de alguns milhares de pessoas. Nas televisões locais a notícia era dada com a maior serenidade, as vítimas entrevistadas a afirmarem que tudo corria com ordem e calma. Mudei para a RTP Internacional e o correspondente na Holanda dava a notícia aos gritos, com um ar alvoraçado, debaixo de um chapéu-de-chuva, transmitindo um destoante ambiente de emergência. Dessa vez o próprio pivot português teve a graça de lhe perguntar se estava com os pés dentro de água… Como também recordo uma correspondente da TV pública em Madrid que na primeira visita do Papa Bento XVI a Espanha não parava de repetir, no habitual tom agitado, o nome do Papa “Benedito”. Uma correspondente da TV pública que nunca tinha reparado no nome da sede do poder político português. E não foi despedida.
Falo também da chusma de jornalistas que se precipitam como pedintes atrás das figuras públicas de microfone em riste, mendigando informações ou formulando perguntas descabidas sem aparentemente se aperceberem da imagem indigna e de falta de profissionalismo que transmitem. Reconheço aqui a responsabilidade dos polítricos e seus assessores de imprensa que permitem estas situações grotescas.
Em 2000 fui porta-voz da Presidência portuguesa da UE. Os dois temas mais mediáticos por nós propostos eram a I Cimeira UE África e a estratégia de Lisboa, em relação às quais muitos países, e a própria Comissão, estavam relutantes. Nas primeiras semanas os jornalistas portugueses enchiam os briefings bissemanais onde faziam perguntas sempre a tentar “destapar” o falhanço dessas iniciativas. A partir do momento em que se verificou que ambas iam ser, como foram, um enorme êxito, os briefings despovoaram-se da maioria dos portugueses, ficando apenas os profissionais mais cotados e os jornalistas estrangeiros.
Nesse período ofereci um almoço a cerca de 20 jornalistas portugueses. Estava em causa um desentendimento entre Lisboa e Madrid, em torno da venda do banco Totta, se bem me lembro. A certa altura eu disse que a grande diferença entre os dois países era que, no caso de um conflito entre eles, a imprensa espanhola apoiava o Governo de Madrid e a portuguesa também… Todos riram. Nenhum me contrariou. Talvez um dia conte como a imprensa portuguesa não nos facilitou as negociações sobre Timor até o acordo ser alcançado com a sua atávica desconfiança do poder político.
Tudo isto vem a propósito da cobertura da posse do Presidente da República pela rádio e a TV, que, confesso, me exasperou. Por razões que não vêem ao caso, comecei por ouvir na rádio o relato da cerimónia, que continuei depois a acompanhar na TV. Em ambos, os múltiplos correspondentes gritavam, com vozes afogueadas, excitadas, descontroladas, os pacatos e rituais acontecimentos que se iam desenvolvendo como se se tratasse de um acontecimento inédito ou inesperado, onde subitamente pudessem descobrir uma revelação sensacional que os consagrasse na história do jornalismo. Pareciam procurar criar a quem ouvia um estado de alvoroço e inquietação, perante um acto formal que decorreu com a normalidade de um uma democracia madura de um País multisecular, onde foram afirmados, com naturalidade, os valores e princípios que inspiram a nossa História e a nossa democracia com um misto de solenidade e simplicidade que não mereciam o alvoroço descabido dos múltiplos e atarefados locutores.
Irritou-me ainda a repetição à exaustão, por todos, um atrás do outro, às vezes várias vezes na mesma frase, da cabotina “flor de estilo“ do inefável “ele que”. O Conselheiro fulano “ele que saiu do carro”, “o General Tal, ele que vai a subir a escada” e assim sucessivamente. Para terminar num tom amável e construtivo, sugiro que, doravante, qualquer locutor ou correspondente que diga “ele que”, seja obrigado “a voltar à casa de saída”, como nos jogos de tabuleiro.
Embaixador reformado