Votar não é para quem quer, é para quem consegue
A falta de condições de acessibilidade de muitas assembleias de voto é um obstáculo, por vezes inultrapassável, para os cidadãos com deficiência ou com mobilidade condicionada. Em Lisboa há uma junta de freguesia que construiu câmaras de voto a pensar naqueles que se deslocam em cadeiras de rodas.
A lei para a eleição do Presidente da República é clara: as assembleias de voto devem reunir-se em edifícios “que ofereçam as indispensáveis condições de capacidade, segurança e acesso”. Mas a realidade nem sempre é essa e para muitos cidadãos com deficiência ou mobilidade condicionada percorrer o caminho até à assembleia, entrar no edifício e chegar à secção de voto implica vencer inúmeras barreiras, que nalguns casos se prolongam até ao momento em que o voto é finalmente depositado na urna.
“Há uma forma muito indulgente de encararmos a legislação das acessibilidades, e isso reflecte-se na forma como se organizam as assembleias de voto”, avalia Jorge Falcato, do Movimento (d)Eficientes Indignados. Este activista lamenta o ritmo “muito lento” a que se tem dado cumprimento à legislação nesta área e sublinha que isso faz com que os cidadãos com deficiência continuem hoje “a viver num certo apartheid”.
Em relação às assembleias de voto, cuja localização é determinada pelos presidentes de câmara, Jorge Falcato está convicto de que “muitas vezes não se pensa sequer” na questão das acessibilidades e nas implicações que uma determinada escolha pode ter para muitos eleitores. Entre eles os cegos ou com baixa visão, os que têm mobilidade reduzida, os que estão temporariamente incapacitados ou simplesmente os idosos.
“Em quase todas as eleições me chegam aos ouvidos casos de pessoas que se recusam a votar porque não se sujeitam a andar ao colo de alguém”, conta o também deputado do Bloco de Esquerda. Segundo explica, essa é a solução a que recorre muitas vezes quem anda numa cadeira de rodas e se vê por exemplo obrigado a subir um lance de escadas para chegar à sua secção de voto.
Já a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, empossada no cargo no final de Outubro, diz que “temos de tudo”, mas faz uma avaliação mais positiva da acessibilidade às assembleias de voto. “É um problema que nos preocupa, mas já não é a realidade catastrófica de há alguns anos”, afirma Ana Sofia Antunes, reconhecendo ainda assim que a situação é diversa consoante se esteja a falar de meios urbanos ou rurais e consoante a dimensão das localidades.
Mas tem a governante conhecimento de que haja quem fique em casa, por considerar que votar é uma tarefa demasiado penosa? “Não podemos descartar essa possibilidade”, diz, admitindo que algumas pessoas possam “sentir que é muito difícil, que exige muito esforço”. E essas dificuldades, salvaguarda a ex-presidente da Direcção Nacional da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, podem existir não só no edifício onde funcionam as assembleias, mas também no caminho até lá.
Isso mesmo é destacado num guia de “Boas práticas para a Instalação de Assembleias de Voto Acessíveis” que foi recentemente divulgado pela equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal da Câmara de Lisboa. Nesse documento, os técnicos municipais lembram que a acessibilidade depende não só das “condições físicas no edifício onde é instalada a assembleia de voto”, mas também da “envolvente” a esse edifício e do próprio “processo de votação”.
O documento, cuja elaboração foi coordenada pelo arquitecto Pedro Homem de Gouveia, apresenta “um conjunto de recomendações, algumas mais fáceis de implementar do que outras, e que devem ser tidas em consideração no momento da selecção/análise dos locais de voto”. Entre elas estão a de que uma assembleia de voto “deve ter na sua proximidade paragens/estações de transporte público e parque de estacionamento” e a de que os percursos pedonais entre esses pontos e o edifício “devem ter, em todo o seu desenvolvimento, um canal de circulação contínuo e desimpedido de obstruções”.
Recomenda-se também que sejam “privilegiados os locais de voto com entrada do edifício sem desníveis” e que quando se revelar necessária a instalação de rampas, no acesso ao local ou no seu interior, elas sejam “firmes, estáveis, resistentes” e tenham “um revestimento de piso antiderrapante”. Neste guia não são esquecidas as secções de voto, onde “existem dois equipamentos cuja disposição e características podem fazer toda a diferença para a plena acessibilidade ao voto”: o “conjunto mesa/urna” e a “câmara de voto”. Ambos, diz-se, devem ter uma altura que permita a sua utilização por pessoas em cadeiras de rodas.
Foi precisamente a pensar nelas que o presidente da Junta de Freguesia de Santo António, no município de Lisboa, decidiu pedir aos seus funcionários para construírem três câmaras de voto, uma para cada uma das suas assembleias. A diferença em relação às normais é que estas têm o tabuleiro, no qual os eleitores pousam os boletins no momento de votar, a uma altura de 80 centímetros, mais de 30 centímetros abaixo do que é habitual.
“Temos que dar o maior conforto possível a todas as pessoas que exercem o seu direito”, justifica Vasco Morgado, explicando que teve esta ideia depois de perceber nas últimas eleições que havia pessoas a preencher o boletim de voto ao colo por não conseguirem chegar ao tabuleiro.
O autarca do PSD diz que cada câmara custou 37,5 euros e meia-dúzia de horas de trabalho de dois funcionários da junta. E quantas pessoas vão ser beneficiadas por esta medida? Vasco Morgado acredita que poderão ser “70 ou 80”, mas desvaloriza essa questão. “Nem que fosse só uma”, remata.
Outra preocupação que o presidente da junta teve, ainda no início do seu mandato, foi promover a alteração da localização de uma das assembleias de voto. Nem todos ficaram felizes com a mudança do edifício da Imprensa Nacional Casa da Moeda para um stand de automóveis, mas Vasco Morgado defende a decisão, lembrando que no primeiro caso os eleitores eram obrigados a subir a um segundo piso para depositar o seu voto (e faziam fila pelas escadas abaixo), enquanto agora o fazem num rés-do-chão.
Na sequência de algumas queixas que vão chegando aqui e ali sobre a questão da acessibilidade às assembleias de voto, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) tem ao longo do tempo dirigido a alguns presidentes de câmara do país alertas para que procedam à escolha de espaços “com as necessárias condições de acessibilidade exterior e interior”, tendo especial atenção a aspectos como a existência de degraus e de elevadores e a dimensão das entradas nas salas de voto, por forma a garantir que a elas consegue aceder quem se desloca em cadeira de rodas.
Isso mesmo aconteceu no passado mês de Dezembro, na sequência de uma reclamação de um eleitor do concelho de Sintra que, “impossibilitado de subir dois lances de escadas devido a uma intervenção cirúrgica que realizou ao joelho”, não conseguiu votar nas últimas legislativas. A sua secção de voto estava instalada num primeiro andar de uma escola secundária, em Massamá,
Segundo descreveu o queixoso à CNE, antes de desistir de exercer o seu direito este cidadão ainda apelou aos bombeiros para que o transportassem até ao andar de cima e aos membros da mesa de voto para que o deixassem votar no rés-do-chão, mas nenhum dos seus pedidos foi atendido. Os primeiros disseram-lhe que não era essa a sua missão e que não podiam responsabilizar-se pela deslocação de um paciente recém-operado e os segundos responderam-lhe que a única solução possível era ele deslocar-se à mesa de voto.
A saga deste eleitor terminou com a apresentação de uma reclamação por escrito, possibilidade que também começou por lhe ser negada e que só conseguiu concretizar depois de um jornalista ter chegado ao local.
Nas eleições de 2017, os cegos já deverão poder votar sozinhos
Se tudo correr conforme os planos do Governo, nas eleições autárquicas de 2017 as pessoas com deficiência visual já poderão exercer o seu direito de voto de forma autónoma e secreta, sem a necessidade de pedirem a alguém que as acompanhe e que as ajude a preencher o boletim de voto. A solução passa pela utilização de matrizes em braille, dentro das quais poderão ser introduzidos os boletins de voto.
A ideia é que as duas peças estejam presas uma à outra, para que não se desloquem com o manuseamento, e que as informações constantes em ambas coincidam, embora num caso estejam em tinta e noutro sejam impressas segundo as normas da grafia braille.
Nas matrizes em braille os quadrados estarão vazados, coincidindo a sua localização com a dos quadrados dos boletins de voto no seu interior. Isto permitirá que os eleitores cegos possam ler a informação respeitante aos candidatos constante nos invólucros e fazer a sua cruz no quadrado correspondente àquele em que escolheram votar.
Este modelo já tinha sido proposto há vários anos pela Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, entidade à qual a actual secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência presidiu entre 2013 e 2015. Agora que está no governo, Ana Sofia Antunes garante que a proposta, que segundo diz foi já concretizada com sucesso em países como a Alemanha, “vai avançar”. A tempo das eleições autárquicas do próximo ano? “Vou fazer tudo ao meu alcance para que isso aconteça”, afirma ao PÚBLICO.
Para garantir que tudo é feito sem sobressaltos, e que há “um texto legal claro” que contemple a utilização das tais matrizes em braille, Ana Sofia Antunes diz que antes de tudo é preciso alterar as diferentes leis eleitorais do país. Depois, explica aquela que é a primeira secretária de Estado cega do país, há que produzir as matrizes (“num material semi-rígido”, como o plástico) e distribuí-las por todas as assembleias de voto de todo o país.
Questionada sobre o custo desta proposta, a governante diz que ele “não é de certeza astronómico” e destaca acima de tudo que a sua concretização será determinante para “conseguir garantir o verdadeiro secretismo e a total independência” dos votos dos deficientes visuais.
Ana Sofia Antunes acredita que além dessa medida concreta aquilo que o Governo poderá fazer é no essencial “um trabalho de sensibilização” e de “apoio e consultoria” à escolha dos locais para a instalação de assembleias de voto. Tudo, frisa, com o objectivo de “garantir que nos dias certos nenhuma pessoa possa dizer que não foi votar porque não tinha condições para isso e garantir que as condições físicas para votarem estavam asseguradas”.