O voto feminino há setenta anos
Tornava-se improvável uma candidatura feminina ao mais alto cargo da magistratura da Nação, como sucede agora, com as candidaturas de Maria de Belém e Marisa Matias.
A campanha eleitoral para a Presidência da República que ora decorre e vivenciámos em 2016, com os seus dez candidatos, dois deles femininos, Maria de Belém e Marisa Matias, traz-nos à memória as restrições que havia, há setenta anos, em pleno Estado Novo, para a mulher votar nas eleições presidenciais, que se efetivaram em 1949.
Depois do fim da Grande Guerra, em 1945, estávamos num quadro geopolítico de forte antagonismo na Europa, que desencadearia a “Guerra Fria”. Em Portugal, Oliveira Salazar empreendia então uma política que dava satisfação às pressões diplomáticas para liberalizar e democratizar o regime, ao mesmo tempo que encetava, com a aproximação à Inglaterra e aos E.U.A., um plano interno de abertura democrática, com a promessa da efetivação de eleições, que sufragaria a sua posição no futuro xadrez político-militar da NATO, mas que se revelaria de cariz enganador para os democratas portugueses.
Salazar era o chefe político do Estado Novo, dum regime autoritário, conservador, corporativo e antidemocrático, que mantinha Portugal debaixo de uma ditadura, que não aceitava a existência de partidos políticos, de sindicatos livres e de oposição politica. A incerteza de perder as eleições, e o seu receio pela abertura democrática, levou a que o seu governo empreendesse um plano que reprimisse severamente todas as manifestações de descontentamento popular e que pela via do recenseamento eleitoral manipularia essas eleições presidenciais, mormente através da “exclusão” do voto feminino.
Como transparece da Lei, datada de 28 de Maio de 1946, que procede a esse recenseamento da população com vista à prossecução do período eleitoral que se vislumbrava para a Presidência da República, era exigido à mulher, para votar, que tivesse pelo menos o Curso Geral dos Liceus, o que era avultado para uma época em que grassava o analfabetismo, que era ainda mais intenso e geral no caso do sexo feminino. Ao homem, em contrapartida, era exigido apenas que soubesse ler e escrever.
O voto estava de uma forma geral, no Estado Novo, limitado e restringido ao comum dos cidadãos. As restrições eram várias e inviabilizavam o voto geral e universal, impedindo que as eleições pudessem ser livres, justas e democráticas. Todavia, no que respeitava ao voto feminino, os embargos eram maiores e tornavam a participação da mulher, para depositar o seu voto na urna eleitoral, quase impossível.
Por outro lado, a consciência de cidadania não chegara ainda à sociedade e muito menos ao seio da família, onde o ente feminino “era a fada do lar”. O seu espaço privado “estava hierarquizado e dependente do pai ou do marido”. “Á mulher era-lhe pedida a condição de ter um bom coração, de ser mais sensível e sentimental”.
A mulher vivia assim num quadro de “domesticidade” que era a sua “condição natural” e estava de várias maneiras “subalternizada na sociedade e na família”. O jantar político tinha por costume ter a presença apenas dos homens. “O motivo político” do repasto dispensava a figura feminina, o que ilustra como estava vedada naturalmente à mulher a sua participação na vida política.
Neste pano de fundo mental, legalista e burocrático, além de impedir a mulher de votar, tornava-se improvável uma candidatura feminina ao mais alto cargo da magistratura da Nação, como sucede agora em 2016, com as candidaturas de Maria de Belém e Marisa Matias, o que dá a este acontecimento um grande significado histórico, que só teve paralelo com Maria de Lourdes Pintasilgo, candidata vencida nas eleições presidenciais de 1986, ganhas por Mário Soares.
Licenciado e Mestre em História Contemporânea